segunda-feira, 14 de maio de 2012

Alice vai ao teatro

Por  Mariana Kaoos e Maria Eduarda Carvalho  

“Paris, 20 de outubro de 1848

Meu amor,

Sinto muito a tua falta. A cidade de Paris é linda, as luzes da cidade, as pessoas são tão amáveis. Essa é a torre Eiffel que lhe falei, é difícil acreditar que ela tenha sido construída por homens tamanha a sua grandiosidade.

Com amor, Alice

Ps: Lembranças a seu pai e sua mãe”

Quinta-feira, a iluminação impecável focou na atriz Shirley Ferreira que vestida de azul sobre uma pilha de malas que compunha o cenário, declamava entre a movimentação dos outros atores e o som marcante da francesa Édith Piáf o trecho acima.

Distante geográfica e históricamente do teatro francês marcado por Édith, o Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima foi palco de Bagunçu, peça apresentada pela Companhia Operakata de Teatro. Noite fria para um Verão Cênico, mas que foi aquecida pela luz do candeeiro de Belinha, a personagem principal do enredo que tem sua vida transformada após encontrar alguns objetos da fazenda do Coronel Domingos de Oliveira, que foi invadida e saqueada num caso de vingança entre famílias.

O diretor e roteirista responsável pela obra, Gilsérgio Botelho, em entrevista ao O Rebecetê explica um pouco mais sobre a história de Bagunçu: “É um espetáculo que fala de resignação, que fala de vida, eu acho que nessa rotina tão atribulada que a gente vive hoje em dia a gente esquece de pequenos gestos. E o espetáculo fala de resgate, é muito bonito, bacana – eu sou suspeito pra falar – mas é isso, é uma obra que fala de vida de redenção.”

O ponto de partida da ficção é a já conhecida Tragédia do Tamanduá, fato verídico ocorrido em Belo Campo onde duas famílias brigaram por uma vaca gerando não só uma rixa como uma sucessão de mortes, que rendeu outros filmes e peças. Sobre essa relação, a atriz Daniela Lisboa que participou também de outras narrativas envolvendo a tragédia fala um pouco mais da diferença entre as obras: “Na hora de compor Bagunçu eu esqueci completamente do filme A Tragédia do Tamanduá porque apesar de ser um tema central, são linguagens completamente diferentes. Bagunçu tem um foco de sonhos, de transformação, de vida e morte, de amor e A Tragédia não, é uma história mais intensa, que ate hoje deixa vestígios na cidade onde ocorreu de fato. Não que Bagunçu seja desmerecido por ser ficção, mas são obras de arte completamente distintas”.

O preço popular (R$1,00 o ingresso) estimulou a superlotação do teatro e Bagunçu acabou "bagunçando" as emoções do público suspenso entre o riso e o choro e mais que isso, fascinados através da história de Belinha, que por vezes era Alice e que também eram todos os atores em cena contracenando entre si, passando todos pelos mesmos personagens, terminando uma frase que o outro começara.

Outro ponto alto da peça foi a apresentação ao vivo dos músicos Felipe Massumi e Cristiano Martins, que contracenaram em som com os atores, causando uma sensibilidade maior no público. De acordo com Massumi, “essa peça muda muito o perfil psicológico dos personagens, então eu tenho que encarnar milhões de personagens porque eu não posso tocar como expectador, eu toco como ator, mas eu sou músico (risos) e nem estou na cena em si, então é uma coisa muito engraçada porque eu tenho que sugar do ator tudo que ele quer expressar, jogar no instrumento e tentar passar isso ao público da maneira mais clara possível. É um espetáculo composto por duas linguagens, a teatral e a acústica que é quando reproduzimos no palco esses sons que bebem na fonte dos teatros de cabaré e do teatro francês”.

O espetáculo estreado originalmente em 2008, ainda terá outras apresentações no dia 25 de Março novamente no Centro de Cultura e no dia 29 no Sesc de Vitória da Conquista.

O verão cênico e os contratempos

A Temporada Verão Cênico é uma parceria entre a Fundação Cultural do Estado da Bahia com teatros privados, artistas e alguns veículos da mídia, que estão promovendo desde o mês de Dezembro ate o fim de Fevereiro, uma programação especial contando com 150 apresentações em diferentes palcos do estado.

Com ingressos a preços populares, o Verão Cênico tem como objetivo ampliar a criação teatral na Bahia, além de estimular a formação de plateia tanto na capital, quanto no interior. Para Kécia do Prado, atuante no cenário cultural de Vitória da Conquista como atriz há dez anos e uma das integrantes de Bagunçu, é de extrema importância projetos como esse ocorrerem cada vez mais no interior. “É muito difícil fazer teatro no Brasil e falando da nossa realidade local é mais ainda, porém também é empolgante. Houve uma época em que diversos grupos de teatro estavam atuando na cidade como o Caçuá e o da Sônia Leite, mas a cultura teatral ficou estagnada por um tempo, só com o Operakata atuando. Agora, acho que isso aos poucos está mudando. Com o Festival de Cenas Curtas que ocorreu em novembro do ano passado, as pessoas voltaram a se sentir mais estimuladas à criação e execução desses projetos. Tenho achado muito bacana as peças que estão sendo apresentadas aqui todas as quartas, porque é dia de semana, mas as pessoas estão vindo e se empolgando com o que está sendo mostrado. Precisamos desses estímulos e dessas novas referencias no nosso trabalho sempre”.

Para o público que assistiu a peça montada, a iluminação e sonoplastia funcionando corretamente, o encanto certamente é maior, mas para quem está atrás dos palcos, em um mês intensivo de trabalho, nem tudo são rosas. Varando noite, levando equipamento pra lá e pra cá dentro do Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima, o responsável pela iluminação, Wan Dick, segurando uma escada para desinstalar as luzes próprias do espetáculo revela que “entre mortos e feridos todos se salvaram. Algo importante a se falar e que muita gente não se atenta a isso é sobre os espaços em que essas peças estão acontecendo. O Centro de Cultura, por exemplo, tem problemas seríssimos, o que acaba atrapalhando no desenvolvimento de um trabalho. Precisamos em primeiro lugar cuidar mais dos espaços. Outro local interessante é o Teatro Carlos Jeová, mas que também se encontra jogado, descuidado. Felizmente conseguimos contornar os problemas, mas o resultado não foi como esperávamos. Aconteceu lindamente, os atores estavam impecáveis, acredito que o espetáculo seja eles e a interação do público, o mais, vem apenas para agregar valores. Poderia ter sido diferente caso houvessem mais equipamentos disponíveis, mas mesmo assim, foi ótimo”.

Após aplaudir de pé por vários minutos, o público satisfeito se reuniu entre conhecidos para debater o conteúdo e a beleza da peça. A produtora musical Leu Couto, sorrindo, afirmou que “a peça foi fantástica. O grupo retratou muitíssimo bem a Tragédia do Tamanduá, só que tomando outra vertente. Os atores são maravilhosos, as pessoas saíram emocionadas. É uma pena que a cidade ainda esteja muito carente de peças dessa qualidade. É preciso que os grandes empresários de Vitória da Conquista valorizem mais a arte local e percebam o quanto agrega valor ter sua empresa vinculada a um patrocínio cultural”.

Ao final, depois de uma noite linda, as coincidências ainda nos deu a cereja do bolo,  encontramos nos corredores uma Alice que num sorriso mais emocionado que uma lágrima brincou que só lhe faltava “numa noite de lua clara ir a Paris, encontrar seu amor perdido em sonhos de outrora”.

*"Alice foi ao teatro" foi originalmente postada no O Rebucetê em janeiro de 2012, mas havia desaparecido misteriosamente do nosso arquivo. Estamos disponibilizando-a mais uma vez e aproveitamos para pedir desculpas aos nossos leitores e principalmente à Cia Operakata de Teatro. Enfim, deliciem-se mais uma vez.

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