Rafael Flores
Foto: Rafael Flores |
Dois dias de viagem em um micro-ônibus com 20 lugares, 15
ocupados por pessoas e cinco ocupados por bagagens. 48 horas para atravessar a
Bahia, o Piauí, o Maranhão e pedaço do Pará. Comida ruim e teclados emanando a
verdadeira música brega em cada bar de beira de estrada que parávamos. Quando
enfim chegamos em Belém meu corpo já se sentia parte do ônibus, tal como
Bootstrap Bill Turner e o navio de Davy Jones. Eram cinco da manhã e logo
percebi o poder destrutivo do verão amazônico, pois já fazia muito calor
naquele início de sexta-feira.
Estávamos ali para participar do 32º Encontro Nacional dos
Estudantes de Comunicação Social, o Enecom Pará 2011. Era o segundo fórum
nacional sobre comunicação que eu participava e o quarto fórum realizado pela
Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social, a Enecos. Historicamente a criação da Enecos, em 1991,
representa a rearticulação nacional do movimento estudantil de Comunicação e se
consolida nesses vinte anos enquanto entidade representativa. A identidade
impressa em vermelho sobre sua bandeira amarela reafirma o objetivo.
O meu primeiro contato com a executiva foi em 2010 no Enecom
Parahyba, onde percebi que as bandeiras defendidas por ela coincidiam com o que
esperava da Comunicação Social quando decidi o que queria ser quando eu
crescesse. Com isso comecei a ter contato com concepções pouco recorrentes nos
limitados debates da sala de aula. Os doze meses que separaram o Enecom
Parahyba* do Enecom Pará contribuíram para que esse pensamento se amadurecesse.
Atuei até janeiro de 2012 no Coletivo Enecos Conquista, no entanto acabei
mudando o compasso e sambando um pouco fora do eixo do movimento estudantil e
conhecendo outros processos de atuação.
A essência destes fóruns está na oportunidade de que estudantes
de todo o Brasil se reúnam para debater sobre os cursos e a Comunicação feita
no país. Além disso, é comum que durante a semana, os participantes se reúnam
em brigadas para desempenhar diversas tarefas que ajudam no funcionamento do
evento. Uma dessas é “o Acorda”, no qual determinado grupo fica responsável por
assegurar a presença dos encontristas dorminhocos nos espaços. E para isso,
todos os artifícios possíveis são utilizados.
Especificamente no terceiro dia, fomos acordados ao som de uma paródia
de algum desses virais chatíssimos da internet. Lembro da expressão de
desprazer no rosto de cada pessoa do meu alojamento. Também me irritei, mas a
excitação pela programação daquele dia falou mais alto.
Era o dia dos Núcleos de Vivência (NV’s), espaço o qual
ainda não havia tido a oportunidade de participar. Esse espaço tem o objetivo
de proporcionar o contato com outras realidades, o estranhamento e a descoberta
de algo novo, ao mesmo tempo em que geram reflexão sobre os projetos visitados
e sua inserção e importância para a comunidade na qual estão inseridos. No
Enecom Parahyba, a delegação de Vitória da Conquista ficou de fora dessa
programação. Normalmente são poucas vagas, devido a dificuldade para o transporte
de centenas de estudantes. Este ano felizmente não tivemos problemas com isso,
a dificuldade de se chegar ao Pará diminuiu a quantidade de encontristas e
facilitou que os NV’s estivessem disponíveis a todos os interessados. Semanas
antes, quando tive acesso à grade de programação, já tinha escolhido pra onde
queria ir no dia da vivência.
Por conta da minha eterna curiosidade pela cultura
afro-brasileira, escolhi conhecer um dos terreiros que constavam na lista de
NV’s. Pegamos um ônibus coletivo para chegar até o terreiro de umbanda Acauã.
No trajeto pude conhecer Belém de perto, pois a grande circulação de pessoas e
as paisagens que absorvemos da janela do ônibus ajudam a entender como funciona
cada cidade. Percebi um lugar extremamente pobre e mal cuidado. No entanto, os
belenenses me mostraram ser um povo bastante interessante, sorridente e acolhedor. Aquele
dia nem lembrava um domingo, Belém parecia muito agitada, a cada ponto os
passageiros se apertavam mais. Descemos em uma praça lotada de vendedores
ambulantes gritando e aguçando minha dor de cabeça, fruto da cerveja ruim que
vendem por lá. Descemos em um bairro quieto, embora nossa guia tivera nos
alertado que era perigoso, e paramos em frente a uma pequena casa de grades
azuis e brancas. Nenhum sinal de que ali dentro existisse algo além de uma moradia
comum.
Foto: Rafael Flores |
Quem nos atendeu foi um senhor, nos seus cinquenta e poucos
anos, de barba e cabelos brancos, com turbante e uma bata vermelha e amarela
que batia nos pés. Este homem se apresentou como Baba Luís Tayando ou
simplesmente Pai Luís. Logo na entrada havia mais de trinta imagens, fato que
encheu meus olhos, queria captar detalhes de cada uma, mas era um corredor
estreito, tive que me mover rapidamente para o restante do pessoal passar.
Enquanto entrávamos, Pai Luís ia explicando o porquê da disposição de cada
imagem e o que elas significavam para ele. Reconheci muitas delas por conta do
meu fascínio pelo candomblé baiano, apesar de descobrir logo depois que é tudo
muito diferente. Conhecemos todas as partes da casa nas quais era permitido o
acesso de visitantes. Por fora parecia pequena, mas por dentro era um grande
corredor repleto de cores e cheiros diferentes. Após conhecer o terreiro,
voltamos para a primeira sala. Nesta, predominavam os santos católicos
representados através de quadros, principalmente por uma grande fotografia de
Santo Antônio disposta entre as bandeiras do Brasil e do Pará. Sentamo-nos em
círculo e esperamos pela apresentação que Pai Luís faria do seu trabalho e do
terreiro. Um data show projetava alguns slides aparentemente feitos na pressa
ou por alguém sem muita experiência com o Power Point.
O terreiro não abriga apenas uma vertente da umbanda, pois é
além de tudo um centro de preservação de cultos afro-religiosos. Dentre eles o
mais comentado e destrinchado por Pai Luís, foi o Tambor de Mina. A mais
poderosa religião afro-indígena da Amazônia tem aproximadamente 2.500 terreiros
espalhados por Belém. Para explicar melhor do que se tratava, foi exibido um
documentário, gravado em parte ali mesmo naquela sala e narrado pelo próprio
pai do terreiro. “A descoberta da Amazônia pelos Turcos Encantados” recria o
universo místico do Tambor de Mina e nos mostra uma realidade imaterial
incrivelmente rica. A religião mistura aspectos da cultura indígena e da
cultura africana com sultões e princesas do Oriente e demonstra até aspectos do
Sebastianismo. “Essa é a verdadeira miscigenação” – pensei alto.
Toda a narração da tradição Mina me despertou muito
encantamento, no entanto não foi o que mais me chamou atenção naquela
exposição. Pai Luís explicou que a casa além de trabalhar com a preservação da
cultura afro-religiosa da Amazônia, realizava projetos na área da educação e da
saúde. Esse fato leva o terreiro a interação com uma gama muito grande da
sociedade, o que torna preciso enfrentar os pesados muros dos preconceitos.
Ainda mais quando tratamos de Belém, que é sede da maior manifestação católica
do Brasil, o Círio de Nazaré. “Um dos nossos maiores problemas além da
intolerância é a comunicação. A mídia é opressora conosco o tempo inteiro, faz
com que preconceitos sejam reproduzidos a todo instante” – comentou o Tayando
Babá, sem saber o quanto essa frase iria me incomodar. Dali pra frente não
consegui mais me concentrar, a infeliz realidade de nossa comunicação me
desconcertou mais uma vez.
Pai Luis/ Foto: Rafael Flores |
O tema central do encontro de 2011 foi Comunicação e
Movimentos Sociais. O objetivo era estabelecer o diálogo entre os estudantes e
os movimentos sociais, o que infelizmente não acontece nas escolas e
consequentemente influenciam no modelo de comunicação que aquele futuro
profissional vai reproduzir. Discutir a questão da criminalização dessas
comunidades e movimentos exige compreender o processo histórico social e
econômico de formação da sociedade brasileira e as relações de dominação que
nas terras latino-americanas justificaram os massacres, genocídios, etnocídios,
exploração e escravidão contra os povos originários e africanos. No terreiro,
pude conhecer um pouco melhor uma realidade que a mídia convencional e o
sistema a qual ela serve tanto oprimem. A proposta de homogeneização da cultura
brasileira, respaldada desde sempre pela "mídia padrão", caem por
terra quando conhecemos lugares como esses. A comunicação não pode funcionar apenas como um serviço ao atual modelo econômico. Assim como um paraíbano com o
rosto de urucum gritou na abertura do meu primeiro encontro: A comunicação
precisa urgentemente ser pintada de povo!
Muito bom o seu texto Rafael, me senti no NV ;)
ResponderExcluirEu tive a oportunidade de conversar uma vez com o diretor desse documentário, nossa, ele me contou cada parada louca sobre a história da produção e do tambor de mina...
A gente se encontra lá por Brasília man? grande abraço!