quarta-feira, 16 de maio de 2012

A música que ainda mete o dedo na ferida

Por Ana Paula Marques e Rafael Flores

Emicida no Festival Suíça Bahiana/ Foto: Rafael Flores
Os conteúdos presentes nas músicas brasileiras voltaram a ser caso de Polícia e de Justiça na última semana. O rapper paulista Emicida foi acusado de desacatar a autoridade dos policiais militares mineiros durante seu show no festival Palco Hip Hop em Belo Horizonte no último domingo (13/05).  Ao introduzir a música “Dedo na Ferida”, o rapper saudou os moradores da Eliana Silva, comunidade composta por mais de 300 famílias, localizada no mesmo bairro em que aconteceu o show e que foi expulsa pela Polícia Militar na sexta-feira (11/05). Ele ainda convidou o público a levantar o dedo do meio para protestar contra a instituição policial e a estrutura política do nosso país.


Não é a primeira vez em que Emicida se posiciona contra atos que criminalizam ou que expulsam comunidades do seu local de vivência. "O Pinheirinho é a Guerra de Canudos do século 21, força ao povo neste momento onde os porcos agiram com as suas artimanhas sórdidas", disse o rapper no seu Twitter, pouco tempo depois de a Polícia Militar de São Paulo (PMSP) e da Guarda Civil Metropolitana (GCM) da cidade de São José dos Campos (SP) invadirem a ocupação conhecida como Pinheirinho. A violenta desocupação da comunidade ficou conhecida como “Massacre do Pinheirinho” após demonstração de violência e brutalidade por parte das forças policiais na expulsão e intimidação dos moradores despejados em meio a uma enorme confusão judicial.

Foto: Rafael Flores
O rap representa hoje, junto com outros elementos da cultura hip hop, o principal movimento musical que enfrenta, denuncia e ironiza as estruturas da nossa sociedade. "Dedo na ferida"  foi lançada há pouco mais de um mês e já funciona como um forte convite a se revoltar, não só com os massacres à tais comunidades, mas também com a forma que a mídia massiva costuma tratar esses casos. “A tevê cancerígena aplaude prédio em cemitério indígena, Auschwitz ou gueto? Índio ou preto? Mesmo jeito, extermínio”. Emicida ainda lembra no rap a truculência com que foram tratados os moradores da Cracolândia (SP), do Quilombo Rio dos Macacos (BA) e da Favela do Moinho (SP).

Ter problemas com a justiça e com a instituição policial por uma letra de rap, porém, não foi apenas privilégio do jovem rapper. Nos anos 90, o grupo Pavilhão 9, formado no bairro do Grajaú em São Paulo, causou controvérsia com o lançamento do álbum de estréia "Primeiro Ato". A faixa intitulada "Otários Fardados", a qual indagava "A quem devemos temer? Polícia ou ladrão?", provocou a ira da instituição. Revoltados com a letra, policiais acabaram descobrindo o telefone da gravadora e passaram a ameaçar os integrantes da banda. Por questões de segurança, o vocalista Rho$$i e os outros integrantes passaram a apresentar-se escondendo o rosto por trás de gorros e pinturas. Além do Pavilhão 9, o grupo Facção Central, principal nome do gangsta rap brasileiro, teve seu videoclipe de "Isso aqui é uma guerra", na época vinculado na MTV, censurado pelo Ministério Público e seus integrantes processados.

Hip Hop Consciência/ Foto: Rafael Flores
MC Guiodai, um dos mais antigos integrantes do Movimento Hip Hop de Vitória da Conquista, nos contou que também já foi alvo de opressão principalmente por parte da Polícia Militar: “Na região aqui já passei por tudo, tá ligado? Pela roupa que você veste e pela música que você canta... Já rolou deu tá mandando meu som e a polícia chegar e enquadrar sem nem saber o que eu tô fazendo, quem eu sou”.  Guiodai faz parte do projeto Hip Hop Consciência que trabalha com a introdução e  preservação da cultura hip hop em três dos bairros periféricos com maiores índices de violência da cidade, através das batalhas de MC’s, apresentações de grupos de break, grafitagem, entre outras atividades. O movimento Hip Hop conquistense está bem conectado com os movimentos sociais da cidade. No Festival da Juventude de Vitória da Conquista, evento que aconteceu entre os dia 4 e 6 de maio desse ano, eles se juntaram ao Levante Popular da Juventude e realizaram uma série de atividades paralelas à grade oficial do evento para chamar atenção para a cultura e para os debates da periferia e do campo. “Aqui é resistência, ninguém vive do Hip Hop, ninguém ganha dinheiro com isso, a galera faz por amor”, completa Guiodai.

Emicida está solto, sua rima pode voltar a bater nesses assuntos torpes, dos quais poucos tem coragem de falar. As tags #DedoNaFerida e #LiberdadeEmicida protagonizando os Trending Topics do Twitter mostram o incômodo provocado nas redes com a falha escancarada da mesma Polícia que expulsou as famílias da comunidade Eliana Silva. A instituição policial está em crise, a sociedade está de olhos bem abertos para suas discrepancias, os funcionários públicos que deviam nos proteger nos assustam. A pesquisa Índice de Confiança na Justiça, divulgada nesta terça-feira (15) pela Fundação Getúlio Vargas, nos mostra que 77% da população com renda de até dois salários mínimos não confia na polícia. Quando a remuneração é maior que dez salários mínimos, a rejeição cai para 59%. Dialogando com esses dados e em resposta à detenção do Emicida, o mineiro MC Rashid tuitou: “#LiberdadeEmicida Policiais, nossas crianças tem medo de vocês, nossas mães tbm! Nós odiamos vocês, não respeitamos! #dedonaferida”.


No 13 de maio, aniversário da Abolição da Escravatura, o jovem negro Emicida mostrou que o Hip Hop, criado nos guetos jamaicanos em Nova York, funciona muito bem como um megafone para a situação social em que o nosso país se encontra.  Já dizia Chico Science, também influenciado pelo Hip Hop pernambucano: "eu me organizando posso desorganizar". O movimento tem se organizado cada vez mais e os seus militantes têm toda razão quando caracterizam o movimento como uma arma. Entretanto, políticas públicas para a cultura são escassas, ainda mais se tratando de políticas que abracem a cultura da periferia da margem; e essa mobilização dos jovens de periferia em torno da arte talvez não tenha tanto alcance enquanto os moldes educacionais, políticos e culturais continuarem estáticos e presos ao atual modelo de Estado. 


Se liguem na playlist que preparamos para você ouvir depois de ler e entender melhor nosso texto:

1 comentários:

  1. Felizmente parte da classe artística nacional ainda vive e não se rendeu ao "comfortably numb way of life". É pena que os cantores e bandas detentores de maior público e dos holofotes da mídia de massa não tenham ainda a consciência de que deveriam fazer coro, cada qual com seu estilo e talento, aos poucos que usam seu talento e recursos para despertar mentes para o processo de estrangulamento social que a base da pirâmide vem sofrendo sob o slogan que chega a ser irônico, "Brasil, um país rico e sem pobreza". Acorda Brasil!

    Caíque Santos.

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