quinta-feira, 10 de maio de 2012

O Rebucetê Entrevista: Fred Zero Quatro

Por Ana Paula Marques e Lucas Dantas


Fred 04/ Foto: Lucas Dantas
Vitória da Conquista, 6 de maio de 2011: depois de um fim de semana frio e “agaroado”, a noite estava pouco nublada, nos agraciando com uma lua cheia um pouco acima do palco do Festival da Juventude, onde Mundo Livre S/A acabara de tocar . A banda pernambucana, que veio pela primeira vez à “suíça bahiana” , é um ícone do Manguebeat, que apesar de seus precursores relativizarem o rótulo, ficou conhecido como “movimento” nos anos 90. Depois de meia hora de descanso, o vocalista Fred Zero Quatro, um dos idealizadores da cena, ao lado de Chico Science (vocalista da Nação Zumbi que morreu há quinze anos, vítima de um acidente de carro) e  redator do Manifesto Manguebeat, nos recebeu na nossa pequena sala de imprensa. Com seu discurso político bastante aguçado e notadamente bairrista, Zero Quatro falou do novo álbum, dos vinte anos do Manguebeat e sobre algumas questões as quais ele considera como “fios condutores” que dialogam com sua música.

O Rebucetê: Como você avalia o Manguebeat agora, após 20 anos? A cena musical pernambucana continua com uma produção tão intensa quanto nos anos 90?

Fred Zero Quatro: A gente acha que a cena inicial, 91, 92 e tal, que é até difícil definir se podemos chamar de movimento, na verdade era um pólo ou um núcleo de produção de ideias. Era quase uma utopia antes de ser um movimento. Eu acho que vendo hoje no aspecto histórico, é paradoxalmente uma utopia que deu certo, pelo menos parcialmente, visto que a utopia é quase uma coisa inalcançável. Para quem conhecia o Recife, a minha banda é anterior a cena. A Mundo Livre é de 84, a gente passou quase 10 anos na garagem, antes de conhecer Chico (Science) e antes de redigir o manifesto e tal. Quem conheceu o circuito de Recife, que nem poderia ser chamado de circuito comparado ao que é hoje, era uma outra realidade, completamente diferente. Parcialmente a gente conseguiu concretizar uma utopia. Tem muita coisa ainda que é bastante precária. Não tem uma rádio até hoje que abrace a cena local, por mais estranho que se possa parecer pra quem não é de lá. Vinte anos depois nenhuma emissora de rádio apareceu não só pra tocar as coisas novas, mas mesmo a Mundo Livre, o Eddie, a Nação Zumbi hoje toca raríssimamente em Recife. Tem um projeto da rádio pública para tentar suprir isso aí, porém tem algumas coisas que ainda não se resolveram. A questão do público ter uma recepção, uma galera local que valoriza, que era muito difícil na minha época, quando começou, hoje tem esse gargalo que foi vencido, não só em termos de conseguir chegar ao público. Hoje existem muitos festivais, tanto a nível privado, quanto a nível público, shows rolando em grandes eventos da cidade e também nesse sentido de ter uma galera interessada nas coisas novas. Isso é algo bacana, o ambiente hoje é muito mais propício desde quando a gente começou. Tem uma questão que é mais ampla, que não diz respeito só ao Recife: o circuito profissional da música passa por um dos períodos mais críticos da história. Se por um lado qualquer adolescente que possui pouquíssimas noções ou ambições de música tem mais acesso a divulgar seu trabalhos, mesmo caseiros, pra um profissional conquistar uma carreira profissional ou fidelizar um púbico, hoje é um dos períodos mais críticos. Aquela história de que gravadora vai sair de cena, mas vai surgir um novo modelo que vai compensar ou substituir a venda de discos é uma falácia. Acho que já tem uns 15 anos de discurso, mas até hoje não surgiu.  Isso é uma coisa que afeta o Recife também, mas não diz respeito somente à cena do mangue.

OR: Você acha que o movimento tecnobrega paraense, que está num momento de ascenção na música popular brasileira, tem um caráter parecido com o manguebeat que explodiu nos anos 90 por aliar a cultura popular com a tecnologia?

Fred: O princípio fundamental do mangue é a diversidade. Por isso é difícil definir se é ou não um movimento musical porque não tem uma batida padrão. Você pega o som do Mundo Livre S/A e compara com o da Nação Zumbi, são sonoridades completamente diferentes. Hoje tem bandas que tem muito a ver com o circuito do mangue, como Academia da Berlinda e a Orquestra Contemporânea de Olinda, que tem uma proximidade com  esse lance do bolero, do brega, do próprio som caribenho. Então, eu acho que num certo sentido o que tá acontecendo em Recife hoje, com essa febre de bandas novas que vem surfar nessa onda do “brega classe-média”, num certo sentido sufoca o surgimento ou a consolidação de quem tem um trabalho um pouco menos comercial, um trabalho mais alternativo. Hoje não existe mais aquele risco, aquele ambiente propício, de se ter algo opressor, como era por exemplo com o axé music aqui na Bahia, principalmente em Salvador, que não deixava quase mais nada aparecer. Ou como foi no tempo da lambada, do Pará. Acho que hoje é um pouco mais relex, tem espaço pra tudo. Dificilmente você vai ter uma predominância opressiva de um ritmo só. Acho que tem uma coisa bacana sim, como por exemplo, tem um compositor de lá do Recife que é bem regresso dessa cena do mangue, já foi parceiro de um cara que era da Mundo Livre S/A, tinha uma banda variante meio ska instrumental, o Zé Cafofinho. Ele é autor de algumas músicas da Gaby Amarantos. Existem coisas afim, que dialogam. Tem alguma coisa do popular, da tecnologia e tal. Tem um disco clássico que foi gravado em Recife, com participação de músicos pernambucanos e paraenses que é o Magneto, uma produção de Recife, mas homenageando guitarristas do Pará. É um projeto do Selo Candeeiro, isso já tem uns quatro ou cinco anos. Não é de hoje que a cena de Recife vem dialogando com um processo com o pessoal do Pará, de São Paulo. É uma coisa que vez por outra rola um projeto coletivo e tal. Nada contra, mas eu espero que como já aconteceu com outros movimentos, outras cenas, isso não acabe sendo diluído muito rápido e acabe perdendo um pouco da essência.

OR: No decorrer da música “Estela” são citadas empresas multinacionais como o trator internacional invadindo a Amazônia. Como vocês encaram a questão da Biopirataria? Por que abordar tal questão em uma das músicas da banda?

Fred: O título do disco acabou sendo uma derivação dessa música (Estela). Essa música foi inspirada num fato real, numa denúncia que surgiu na CPI da biopirataria, que era a venda de material genético, quase que um tráfico de material genético pela internet que era promovido por um site americano de uma fundação americana. Acho que isso foi uma notícia/ episódio que era bem emblemático pra ser título do disco porque você pode derivar para várias questões importantes da atualidade: a cultura digital, a questão da ética na internet, a questão do próprio direito autoral. São vários temas muito pertinentes. São debates urgentes e essa questão da biopirataria, assim como a questão da sustentabilidade, pode ser um fio condutor muito amplo. Acho que é um tema que pode dialogar com muitos outros.


OR: Ainda na música "Estela", é abordado a imposição da indústria cultural sobre a figura do Pajé (o índio). Como a banda avalia essa mercantilização da cultura?

Fred 04/ Foto: Lucas Dantas
Fred: Eu fiz uma visita à passeio a pouco tempo ao Vale do Catimbal, que é um parque arqueológico, com inscrições rupestres de seis mil anos atrás. Lá também tem algumas tribos que resistem, mas não tem mais a língua e não conseguiu preservar quase nada da cultura nativa. A gente já discutiu isso em outros discos, como por exemplo, “O Outro Mundo de Manuela Rosário”, onde a gente retrata também a questão sobre o conflito de terras indígenas, que é uma coisa que vez por outra, você tá vendo explodir aqui e ali, seja na Amazônia, no Pantanal ou aqui na Bahia. Onde tem demarcação de terra sempre tem problema, essa questão é delicada. Por um lado, a questão ambiental de querer preservar o lance da cultura indígena nativa que ao mesmo tempo pega a questão florestal, os mananciais e tal, por outro aqui no Brasil tem uma economia que depois de séculos de colonialismo, tá começando a se afirmar como uma potência exportadora muito poderosa, que tá começando a saldar dívidas sociais com importância histórica. Você tem inclusão de uma nova classe econômica, incluindo no mercado consumidor. Recentemente eu falei sobre SUAPE, que é um complexo industrial pernambucano que tá gerando mais de cinquenta mil empregos. Por enquanto, apenas só o primeiro navio foi entregue, mas tem vinte e tantas encomendas de navio e tal, e a maioria da população ali vivia de catar marisco e caranguejo. Por um lado tem gente que fala “ah mais tá sufocando uma antiga tradição”, mas eu não quero viver num planeta onde todos os mangues e todas as atividades extrativistas estão preservadas, porém com altíssimo índices de mortalidade infantil, subnutrição e por aí vai. Tem que achar um meio termo.

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