Por Ana
Paula Marques e Lucas Dantas
Fred 04/ Foto: Lucas Dantas |
Vitória da
Conquista, 6 de maio de 2011: depois de um fim de semana frio e “agaroado”, a
noite estava pouco nublada, nos agraciando com uma lua cheia um pouco acima do
palco do Festival da Juventude, onde Mundo Livre S/A acabara de tocar . A banda
pernambucana, que veio pela primeira vez à “suíça bahiana” , é um ícone do Manguebeat, que apesar de seus precursores relativizarem o rótulo, ficou conhecido como “movimento” nos anos 90. Depois de meia hora de descanso, o
vocalista Fred Zero Quatro, um dos idealizadores da cena, ao lado de Chico
Science (vocalista da Nação Zumbi que morreu há quinze anos, vítima de um acidente
de carro) e redator do Manifesto Manguebeat, nos recebeu na nossa pequena
sala de imprensa. Com seu discurso político bastante aguçado e notadamente
bairrista, Zero Quatro falou do novo álbum, dos vinte anos do Manguebeat e sobre
algumas questões as quais ele considera como “fios condutores” que dialogam com
sua música.
O Rebucetê:
Como você avalia o Manguebeat agora, após 20 anos? A cena musical pernambucana
continua com uma produção tão intensa quanto nos anos 90?
Fred Zero
Quatro: A gente acha que a cena inicial, 91, 92 e tal, que é até difícil
definir se podemos chamar de movimento, na verdade era um pólo ou um núcleo de
produção de ideias. Era quase uma utopia antes de ser um movimento. Eu acho que
vendo hoje no aspecto histórico, é paradoxalmente uma utopia que deu certo,
pelo menos parcialmente, visto que a utopia é quase uma coisa inalcançável.
Para quem conhecia o Recife, a minha banda é anterior a cena. A Mundo Livre é
de 84, a gente passou quase 10 anos na garagem, antes de conhecer Chico
(Science) e antes de redigir o manifesto e tal. Quem conheceu o circuito de
Recife, que nem poderia ser chamado de circuito comparado ao que é hoje, era
uma outra realidade, completamente diferente. Parcialmente a gente conseguiu
concretizar uma utopia. Tem muita coisa ainda que é bastante precária. Não tem
uma rádio até hoje que abrace a cena local, por mais estranho que se possa
parecer pra quem não é de lá. Vinte anos depois nenhuma emissora de rádio
apareceu não só pra tocar as coisas novas, mas mesmo a Mundo Livre, o Eddie, a
Nação Zumbi hoje toca raríssimamente em Recife. Tem um projeto da rádio pública
para tentar suprir isso aí, porém tem algumas coisas que ainda não se
resolveram. A questão do público ter uma recepção, uma galera local que
valoriza, que era muito difícil na minha época, quando começou, hoje tem esse
gargalo que foi vencido, não só em termos de conseguir chegar ao público. Hoje
existem muitos festivais, tanto a nível privado, quanto a nível público, shows
rolando em grandes eventos da cidade e também nesse sentido de ter uma galera
interessada nas coisas novas. Isso é algo bacana, o ambiente hoje é muito mais
propício desde quando a gente começou. Tem uma questão que é mais ampla, que
não diz respeito só ao Recife: o circuito profissional da música passa por um
dos períodos mais críticos da história. Se por um lado qualquer adolescente que
possui pouquíssimas noções ou ambições de música tem mais acesso a divulgar seu
trabalhos, mesmo caseiros, pra um profissional conquistar uma carreira
profissional ou fidelizar um púbico, hoje é um dos períodos mais críticos.
Aquela história de que gravadora vai sair de cena, mas vai surgir um novo
modelo que vai compensar ou substituir a venda de discos é uma falácia. Acho
que já tem uns 15 anos de discurso, mas até hoje não surgiu. Isso é uma
coisa que afeta o Recife também, mas não diz respeito somente à cena do mangue.
OR: Você acha que o movimento tecnobrega paraense, que está num momento de ascenção na música popular brasileira, tem um caráter parecido com o manguebeat que explodiu nos anos 90 por aliar a cultura popular com a tecnologia?
Fred: O
princípio fundamental do mangue é a diversidade. Por isso é difícil definir se
é ou não um movimento musical porque não tem uma batida padrão. Você pega o som
do Mundo Livre S/A e compara com o da Nação Zumbi, são sonoridades
completamente diferentes. Hoje tem bandas que tem muito a ver com o circuito do
mangue, como Academia da Berlinda e a Orquestra Contemporânea de Olinda, que
tem uma proximidade com esse lance do bolero, do brega, do próprio som
caribenho. Então, eu acho que num certo sentido o que tá acontecendo em Recife
hoje, com essa febre de bandas novas que vem surfar nessa onda do “brega
classe-média”, num certo sentido sufoca o surgimento ou a consolidação de quem
tem um trabalho um pouco menos comercial, um trabalho mais alternativo. Hoje
não existe mais aquele risco, aquele ambiente propício, de se ter algo
opressor, como era por exemplo com o axé music aqui na Bahia, principalmente em
Salvador, que não deixava quase mais nada aparecer. Ou como foi no tempo da
lambada, do Pará. Acho que hoje é um pouco mais relex, tem espaço pra tudo.
Dificilmente você vai ter uma predominância opressiva de um ritmo só. Acho que
tem uma coisa bacana sim, como por exemplo, tem um compositor de lá do Recife
que é bem regresso dessa cena do mangue, já foi parceiro de um cara que era da
Mundo Livre S/A, tinha uma banda variante meio ska instrumental, o Zé
Cafofinho. Ele é autor de algumas músicas da Gaby Amarantos. Existem coisas
afim, que dialogam. Tem alguma coisa do popular, da tecnologia e tal. Tem um
disco clássico que foi gravado em Recife, com participação de músicos
pernambucanos e paraenses que é o Magneto, uma produção de Recife, mas
homenageando guitarristas do Pará. É um projeto do Selo Candeeiro, isso já tem
uns quatro ou cinco anos. Não é de hoje que a cena de Recife vem dialogando com
um processo com o pessoal do Pará, de São Paulo. É uma coisa que vez por outra
rola um projeto coletivo e tal. Nada contra, mas eu espero que como já
aconteceu com outros movimentos, outras cenas, isso não acabe sendo diluído
muito rápido e acabe perdendo um pouco da essência.
OR: No decorrer da música “Estela” são citadas empresas multinacionais como o trator internacional invadindo a Amazônia. Como vocês encaram a questão da Biopirataria? Por que abordar tal questão em uma das músicas da banda?
Fred: O
título do disco acabou sendo uma derivação dessa música (Estela). Essa música
foi inspirada num fato real, numa denúncia que surgiu na CPI da biopirataria,
que era a venda de material genético, quase que um tráfico de material genético
pela internet que era promovido por um site americano de uma fundação
americana. Acho que isso foi uma notícia/ episódio que era bem emblemático pra
ser título do disco porque você pode derivar para várias questões importantes
da atualidade: a cultura digital, a questão da ética na internet, a questão do
próprio direito autoral. São vários temas muito pertinentes. São debates
urgentes e essa questão da biopirataria, assim como a questão da
sustentabilidade, pode ser um fio condutor muito amplo. Acho que é um tema que
pode dialogar com muitos outros.
OR: Ainda na música "Estela", é abordado a imposição da indústria cultural sobre a figura do Pajé (o índio). Como a banda avalia essa mercantilização da cultura?
Fred 04/ Foto: Lucas Dantas |
Fred: Eu
fiz uma visita à passeio a pouco tempo ao Vale do Catimbal, que é um parque
arqueológico, com inscrições rupestres de seis mil anos atrás. Lá também tem
algumas tribos que resistem, mas não tem mais a língua e não conseguiu
preservar quase nada da cultura nativa. A gente já discutiu isso em outros
discos, como por exemplo, “O Outro Mundo de Manuela Rosário”, onde a gente
retrata também a questão sobre o conflito de terras indígenas, que é uma coisa
que vez por outra, você tá vendo explodir aqui e ali, seja na Amazônia, no
Pantanal ou aqui na Bahia. Onde tem demarcação de terra sempre tem problema,
essa questão é delicada. Por um lado, a questão ambiental de querer preservar o
lance da cultura indígena nativa que ao mesmo tempo pega a questão florestal,
os mananciais e tal, por outro aqui no Brasil tem uma economia que depois de
séculos de colonialismo, tá começando a se afirmar como uma potência
exportadora muito poderosa, que tá começando a saldar dívidas sociais com
importância histórica. Você tem inclusão de uma nova classe econômica,
incluindo no mercado consumidor. Recentemente eu falei sobre SUAPE, que é um
complexo industrial pernambucano que tá gerando mais de cinquenta mil empregos.
Por enquanto, apenas só o primeiro navio foi entregue, mas tem vinte e tantas
encomendas de navio e tal, e a maioria da população ali vivia de catar marisco
e caranguejo. Por um lado tem gente que fala “ah mais tá sufocando uma antiga
tradição”, mas eu não quero viver num planeta onde todos os mangues e todas as
atividades extrativistas estão preservadas, porém com altíssimo índices de
mortalidade infantil, subnutrição e por aí vai. Tem que achar um meio termo.
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