sábado, 30 de junho de 2012

Que a comunicação se pinte de povo!

Rafael Flores

Foto: Rafael Flores
Dois dias de viagem em um micro-ônibus com 20 lugares, 15 ocupados por pessoas e cinco ocupados por bagagens. 48 horas para atravessar a Bahia, o Piauí, o Maranhão e pedaço do Pará. Comida ruim e teclados emanando a verdadeira música brega em cada bar de beira de estrada que parávamos. Quando enfim chegamos em Belém meu corpo já se sentia parte do ônibus, tal como Bootstrap Bill Turner e o navio de Davy Jones. Eram cinco da manhã e logo percebi o poder destrutivo do verão amazônico, pois já fazia muito calor naquele início de sexta-feira.

Estávamos ali para participar do 32º Encontro Nacional dos Estudantes de Comunicação Social, o Enecom Pará 2011. Era o segundo fórum nacional sobre comunicação que eu participava e o quarto fórum realizado pela Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social, a Enecos.  Historicamente a criação da Enecos, em 1991, representa a rearticulação nacional do movimento estudantil de Comunicação e se consolida nesses vinte anos enquanto entidade representativa. A identidade impressa em vermelho sobre sua bandeira amarela reafirma o objetivo.
O meu primeiro contato com a executiva foi em 2010 no Enecom Parahyba, onde percebi que as bandeiras defendidas por ela coincidiam com o que esperava da Comunicação Social quando decidi o que queria ser quando eu crescesse. Com isso comecei a ter contato com concepções pouco recorrentes nos limitados debates da sala de aula. Os doze meses que separaram o Enecom Parahyba* do Enecom Pará contribuíram para que esse pensamento se amadurecesse. Atuei até janeiro de 2012 no Coletivo Enecos Conquista, no entanto acabei mudando o compasso e sambando um pouco fora do eixo do movimento estudantil e conhecendo outros processos de atuação.

A essência destes fóruns está na oportunidade de que estudantes de todo o Brasil se reúnam para debater sobre os cursos e a Comunicação feita no país. Além disso, é comum que durante a semana, os participantes se reúnam em brigadas para desempenhar diversas tarefas que ajudam no funcionamento do evento. Uma dessas é “o Acorda”, no qual determinado grupo fica responsável por assegurar a presença dos encontristas dorminhocos nos espaços. E para isso, todos os artifícios possíveis são utilizados.  Especificamente no terceiro dia, fomos acordados ao som de uma paródia de algum desses virais chatíssimos da internet. Lembro da expressão de desprazer no rosto de cada pessoa do meu alojamento. Também me irritei, mas a excitação pela programação daquele dia falou mais alto.

Era o dia dos Núcleos de Vivência (NV’s), espaço o qual ainda não havia tido a oportunidade de participar. Esse espaço tem o objetivo de proporcionar o contato com outras realidades, o estranhamento e a descoberta de algo novo, ao mesmo tempo em que geram reflexão sobre os projetos visitados e sua inserção e importância para a comunidade na qual estão inseridos. No Enecom Parahyba, a delegação de Vitória da Conquista ficou de fora dessa programação. Normalmente são poucas vagas, devido a dificuldade para o transporte de centenas de estudantes. Este ano felizmente não tivemos problemas com isso, a dificuldade de se chegar ao Pará diminuiu a quantidade de encontristas e facilitou que os NV’s estivessem disponíveis a todos os interessados. Semanas antes, quando tive acesso à grade de programação, já tinha escolhido pra onde queria ir no dia da vivência.

Por conta da minha eterna curiosidade pela cultura afro-brasileira, escolhi conhecer um dos terreiros que constavam na lista de NV’s. Pegamos um ônibus coletivo para chegar até o terreiro de umbanda Acauã. No trajeto pude conhecer Belém de perto, pois a grande circulação de pessoas e as paisagens que absorvemos da janela do ônibus ajudam a entender como funciona cada cidade. Percebi um lugar extremamente pobre e mal cuidado. No entanto, os belenenses me mostraram ser um povo bastante interessante, sorridente e acolhedor. Aquele dia nem lembrava um domingo, Belém parecia muito agitada, a cada ponto os passageiros se apertavam mais. Descemos em uma praça lotada de vendedores ambulantes gritando e aguçando minha dor de cabeça, fruto da cerveja ruim que vendem por lá. Descemos em um bairro quieto, embora nossa guia tivera nos alertado que era perigoso, e paramos em frente a uma pequena casa de grades azuis e brancas. Nenhum sinal de que ali dentro existisse algo além de uma moradia comum.

Foto: Rafael Flores
Quem nos atendeu foi um senhor, nos seus cinquenta e poucos anos, de barba e cabelos brancos, com turbante e uma bata vermelha e amarela que batia nos pés. Este homem se apresentou como Baba Luís Tayando ou simplesmente Pai Luís. Logo na entrada havia mais de trinta imagens, fato que encheu meus olhos, queria captar detalhes de cada uma, mas era um corredor estreito, tive que me mover rapidamente para o restante do pessoal passar. Enquanto entrávamos, Pai Luís ia explicando o porquê da disposição de cada imagem e o que elas significavam para ele. Reconheci muitas delas por conta do meu fascínio pelo candomblé baiano, apesar de descobrir logo depois que é tudo muito diferente. Conhecemos todas as partes da casa nas quais era permitido o acesso de visitantes. Por fora parecia pequena, mas por dentro era um grande corredor repleto de cores e cheiros diferentes. Após conhecer o terreiro, voltamos para a primeira sala. Nesta, predominavam os santos católicos representados através de quadros, principalmente por uma grande fotografia de Santo Antônio disposta entre as bandeiras do Brasil e do Pará. Sentamo-nos em círculo e esperamos pela apresentação que Pai Luís faria do seu trabalho e do terreiro. Um data show projetava alguns slides aparentemente feitos na pressa ou por alguém sem muita experiência com o Power Point.

O terreiro não abriga apenas uma vertente da umbanda, pois é além de tudo um centro de preservação de cultos afro-religiosos. Dentre eles o mais comentado e destrinchado por Pai Luís, foi o Tambor de Mina. A mais poderosa religião afro-indígena da Amazônia tem aproximadamente 2.500 terreiros espalhados por Belém. Para explicar melhor do que se tratava, foi exibido um documentário, gravado em parte ali mesmo naquela sala e narrado pelo próprio pai do terreiro. “A descoberta da Amazônia pelos Turcos Encantados” recria o universo místico do Tambor de Mina e nos mostra uma realidade imaterial incrivelmente rica. A religião mistura aspectos da cultura indígena e da cultura africana com sultões e princesas do Oriente e demonstra até aspectos do Sebastianismo. “Essa é a verdadeira miscigenação” – pensei alto.

Toda a narração da tradição Mina me despertou muito encantamento, no entanto não foi o que mais me chamou atenção naquela exposição. Pai Luís explicou que a casa além de trabalhar com a preservação da cultura afro-religiosa da Amazônia, realizava projetos na área da educação e da saúde. Esse fato leva o terreiro a interação com uma gama muito grande da sociedade, o que torna preciso enfrentar os pesados muros dos preconceitos. Ainda mais quando tratamos de Belém, que é sede da maior manifestação católica do Brasil, o Círio de Nazaré. “Um dos nossos maiores problemas além da intolerância é a comunicação. A mídia é opressora conosco o tempo inteiro, faz com que preconceitos sejam reproduzidos a todo instante” – comentou o Tayando Babá, sem saber o quanto essa frase iria me incomodar. Dali pra frente não consegui mais me concentrar, a infeliz realidade de nossa comunicação me desconcertou mais uma vez.
Pai Luis/ Foto: Rafael Flores

O tema central do encontro de 2011 foi Comunicação e Movimentos Sociais. O objetivo era estabelecer o diálogo entre os estudantes e os movimentos sociais, o que infelizmente não acontece nas escolas e consequentemente influenciam no modelo de comunicação que aquele futuro profissional vai reproduzir. Discutir a questão da criminalização dessas comunidades e movimentos exige compreender o processo histórico social e econômico de formação da sociedade brasileira e as relações de dominação que nas terras latino-americanas justificaram os massacres, genocídios, etnocídios, exploração e escravidão contra os povos originários e africanos. No terreiro, pude conhecer um pouco melhor uma realidade que a mídia convencional e o sistema a qual ela serve tanto oprimem. A proposta de homogeneização da cultura brasileira, respaldada desde sempre pela "mídia padrão", caem por terra quando conhecemos lugares como esses. A comunicação não pode funcionar apenas como um serviço ao atual modelo econômico. Assim como um paraíbano com o rosto de urucum gritou na abertura do meu primeiro encontro: A comunicação precisa urgentemente ser pintada de povo! 

1 comentários:

  1. Muito bom o seu texto Rafael, me senti no NV ;)
    Eu tive a oportunidade de conversar uma vez com o diretor desse documentário, nossa, ele me contou cada parada louca sobre a história da produção e do tambor de mina...

    A gente se encontra lá por Brasília man? grande abraço!

    ResponderExcluir