domingo, 10 de junho de 2012

"Quem canta sua aldeia, universaliza-se"

Por Ana Paula Marques e Rafael Flores


Xangai e Bule Bule/ Foto: Rafael Flores
A cidade já se enfeita e o cheiro de quentão já preenche todo o comércio, as mãos descascam amendoim e os ouvidos já percebem as homenagens a Gonzagão ecoando por aí. Junho já corre e Vitória da Conquista, como bom interior da Bahia, já arrasta o pé devagarinho. Na última sexta-feira, 08, na porta do Centro de Cultura, a presença do velho e doce Zé Baleiro, figura sempre presente nas portas de cinemas e teatros da cidade, anunciava que por ali acontecia algo bom. Lá dentro, Xangai, Bule-Bule e Juraildes da Cruz traziam a cultura popular do sertão pra sala de estar dos conquistenses.

O palco estava enfeitado com xilogravuras do artista Arisson Senna, outrora utilizados na gravação do DVD do grupo local Amantes do Forró. Xangai saiu sorrateiro das cochias e como numa manhã em que não quisesse acordar ninguém, com uma garrafa de café nas mãos, se acomodou devagar em uma das três cadeiras posicionadas no palco. Entoou “Raízes”, música de Renato Teixeira, um dos seus muitos parceiros. “Amanhecer é uma lição do universo, que nos ensina que é preciso renascer”, dizia os versos da canção, que aos poucos foi despertando a platéia para um dia de cantigas à beira da fogueira.

Bule Bule/ Foto: Rafael Flores
Ao som da viola, Bule-Bule foi convidado a se “aprochegar”. Sentou-se sem pressa, trazendo seus causos e repentes, mas foi direto e deu logo o recado: “não vim pra falar de coisa triste, de seca e de tragédia. Vim cantar o sertão da fartura e dar um abraço em Conquista, encher o ouvido dessas pessoas com coisa boa do sertão”. Bule-Bule é o apelido de Antônio Ribeiro da Conceição, cantador, compositor, repentista, poeta e cordelista, defende e domina diversos ritmos do nordestinos, entre eles está a chula, o martelo agalopado, o coco, a cantiga de roda e a tirana.

Então veio a chuva de rimas, permitindo a platéia a brincar nas poças de lirismo que o poeta sertanejo deixava. Através de uma tirana, ritmo compassado de origem espanhola, cumprimentou os seus amigos que estavam na platéia e sugeriu um convite: “Mais tarde Ton Ton vem cá, quilarino meu, dá uns grito mais Xangai, quilarino meu”. Com o sorriso aberto e olhos brilhantes, Xangai encarava o amigo como uma criança quando vê um ídolo em ação.

Foto: Rafael Flores
Seguindo as recomendações do seu médico, a quem soltou piadas durante toda a apresentação, Bule-Bule não tocou seu pandeiro. Substituindo o instrumento proibido e com chapéu, casaco e sandálias  de couro, o repentista pegou um prato e uma faca e começou a “rapar”,  levando nossa imaginação às portas de igreja de todos os interiores brasileiros. Mais algumas rimas e se “alevantou”, agora com pressa para não perder seu ônibus, que sairia dali a uma hora, fazendo com que as três cadeiras nem chegassem a ser utilizadas ao mesmo tempo. No entanto, Xangai não ficou só: Juraildes da Cruz, também parceiro de longas datas e que acompanhava a apresentação por detrás das cortinas, substituiu a presença do repentista. Juraildes é compositor de várias músicas já conhecidas, como “Quem ama perdoa”, "Meninos" e “Nós é Jeca, mas é Jóia”, as quais foram acompanhadas em coro pelo auditório do Centro de Cultura.

Na tardinha como quem aprecia o cuscuz com leite, o requeijão e o gado no curral, os compadres passaram a se envolver em conversas sobre o mundo e coisas que o rodeiam. Xangai começou a lembrar do São João das roças, do forró tradicional e lamentar por este estar migrando para as cidades e perdendo sua áurea de festa popular. “Para achar uma pessoa nas roças, brincando o folguedo, brincadeiras juninas é muito difícil. Vão todos para as grandes cidades, para Jacobina, Amargosa, Feira de Santana, Jequié, Conquista, Senhor do Bonfim, Cruz das Almas, tudo ver banda de carnaval tocando e um tipo de música que pode até ser forró, mas música não é”, completou o cantador em uma conversa rápida no camarim.


Foto: Rafael Flores
Xangai volta e meia quando retorna às suas raízes vem acompanhado de algum parceiro. Já trouxe para Vitória da Conquista Zé Geraldo, Renato Teixeira, Paulinho da Viola, Juraildes da Cruz, Jessier Quirino e mais “uma renca” de artistas e companheiros.“Eu faço essa parceria com Paulo Mascena* há quinze anos ou mais. Então é uma oportunidade do povo daqui ser agraciado por pessoas de talentos tão grandiosos. Aí eu fico pensando, eu só canto porque estou anunciado, mas a ideia mesmo é apresentar os convidados. Não tem fuleragem, só tem competência, só tem beleza”, diz.

Ainda segundo ele, Vitória da Conquista tem uma simbiose de arte baiana e mineira miscigenada. “Mas a música mineira se parece um pouco com a daqui da nossa região de Conquista, por conta mesmo da proximidade. Como diz Leon Tolstoi, quem canta sua aldeia, universaliza-se. Então seria assim com a música do sertão. Juraildes que chega aqui cantando o universo da realidade dele, lá do lugar onde não tem mar, no Tocantins, faz com essa beleza, clareia como se a gente tivesse ouvindo o mar barulhando e ele poetizando, cantando um galope na beira do mar.”

Xangai e Ton Ton Flores/ Foto: Luiza Audaz
O sol foi descendo, colorindo o fim de tarde. Anoiteceu, as canções começaram a ficar mais densas e os compadres a conversar um pouco menos. Na boca da noite, a lua e as paixões perdidas foram os temas centrais da cantoria. Vieram canções de grandes nomes da música romântica do século passado, como Ataulfo Alves, Waldick Soriano e o venezuelano Simon Diaz, autores de grandes clássicos da luz vermelha. Assim, Xangai pediu licença a Juraildes para convidar um amigo da plateia, já anunciado por Bule-Bule no início do espetáculo. Ton Ton Flores, cantador e compositor conhecido por ser um dos melhores intérpretes de Waldick Soriano, tendo sido apelidado de “Waldiquinho” pelo próprio, subiu ao palco sorrindo e quase pudemos ver a lua quando juntos cantaram “Paixão de um Homem”.

Cada aldeia tem seu jeito de expressar sua cultura e o espetáculo daquela noite cantava a nossa, o sertão que nos criou e que nos desperta um pertencimento romântico. Encerrou-se a apresentação e o público depois de tantas imagens sertanejas deixadas pelos senhores das cantorias e já tão presentes no imaginário coletivo da cidade, foi para casa com a vontade de ver vagalumes, dormir com coachos no pé da porta e no outro dia, cantar mais uma canção com o sabiá. 

*Produtor Cultural e Coordenador do Centro de Cultura

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