Por Ana Paula Marques e Rafael Flores
Xangai e Bule Bule/ Foto: Rafael Flores |
A cidade já se enfeita e o cheiro de quentão já preenche todo o comércio, as
mãos descascam amendoim e os ouvidos já percebem as homenagens a Gonzagão
ecoando por aí. Junho já corre e Vitória da Conquista, como bom interior da
Bahia, já arrasta o pé devagarinho. Na última sexta-feira, 08, na porta do
Centro de Cultura, a presença do velho e doce Zé Baleiro, figura sempre
presente nas portas de cinemas e teatros da cidade, anunciava que por ali
acontecia algo bom. Lá dentro, Xangai, Bule-Bule e Juraildes da Cruz traziam a
cultura popular do sertão pra sala de estar dos conquistenses.
O palco estava enfeitado com xilogravuras do artista Arisson
Senna, outrora utilizados na gravação do DVD do grupo local Amantes do Forró.
Xangai saiu sorrateiro das cochias e como numa manhã em que não quisesse
acordar ninguém, com uma garrafa de café nas mãos, se acomodou devagar em uma
das três cadeiras posicionadas no palco. Entoou “Raízes”, música de Renato
Teixeira, um dos seus muitos parceiros. “Amanhecer é uma lição do universo, que
nos ensina que é preciso renascer”, dizia os versos da canção, que aos poucos
foi despertando a platéia para um dia de cantigas à beira da fogueira.
Bule Bule/ Foto: Rafael Flores |
Ao som da viola, Bule-Bule foi convidado a se “aprochegar”.
Sentou-se sem pressa, trazendo seus causos e repentes, mas foi direto e deu
logo o recado: “não vim pra falar de coisa triste, de seca e de tragédia. Vim
cantar o sertão da fartura e dar um abraço em Conquista, encher o ouvido dessas
pessoas com coisa boa do sertão”. Bule-Bule é o apelido de Antônio Ribeiro da
Conceição, cantador, compositor, repentista, poeta e cordelista, defende e
domina diversos ritmos do nordestinos, entre eles está a chula, o martelo
agalopado, o coco, a cantiga de roda e a tirana.
Então veio a chuva de rimas, permitindo a platéia a brincar
nas poças de lirismo que o poeta sertanejo deixava. Através de uma tirana,
ritmo compassado de origem espanhola, cumprimentou os seus amigos que estavam
na platéia e sugeriu um convite: “Mais tarde Ton Ton vem cá, quilarino meu, dá
uns grito mais Xangai, quilarino meu”. Com o sorriso aberto e olhos brilhantes,
Xangai encarava o amigo como uma criança quando vê um ídolo em ação.
Foto: Rafael Flores |
Seguindo as recomendações do seu médico, a quem soltou
piadas durante toda a apresentação, Bule-Bule não tocou seu pandeiro.
Substituindo o instrumento proibido e com chapéu, casaco e sandálias de couro, o repentista
pegou um prato e uma faca e começou a “rapar”, levando nossa imaginação
às portas de igreja de todos os interiores brasileiros. Mais algumas rimas e se
“alevantou”, agora com pressa para não perder seu ônibus, que sairia dali a uma
hora, fazendo com que as três cadeiras nem chegassem a ser utilizadas ao mesmo
tempo. No entanto, Xangai não ficou só: Juraildes da Cruz, também parceiro de
longas datas e que acompanhava a apresentação por detrás das cortinas,
substituiu a presença do repentista. Juraildes é compositor de várias músicas
já conhecidas, como “Quem ama perdoa”, "Meninos" e “Nós é Jeca, mas é Jóia”, as quais
foram acompanhadas em coro pelo auditório do Centro de Cultura.
Na tardinha como quem aprecia o cuscuz com leite, o
requeijão e o gado no curral, os compadres passaram a se envolver em conversas
sobre o mundo e coisas que o rodeiam. Xangai começou a lembrar do São João das
roças, do forró tradicional e lamentar por este estar migrando para as cidades
e perdendo sua áurea de festa popular. “Para achar uma pessoa nas roças,
brincando o folguedo, brincadeiras juninas é muito difícil. Vão todos para as
grandes cidades, para Jacobina, Amargosa, Feira de Santana, Jequié, Conquista,
Senhor do Bonfim, Cruz das Almas, tudo ver banda de carnaval tocando e um tipo
de música que pode até ser forró, mas música não é”, completou o cantador em
uma conversa rápida no camarim.
Foto: Rafael Flores |
Ainda segundo ele, Vitória da Conquista tem uma simbiose de arte
baiana e mineira miscigenada. “Mas a música mineira se parece um pouco com a
daqui da nossa região de Conquista, por conta mesmo da proximidade. Como diz
Leon Tolstoi, quem canta sua aldeia, universaliza-se. Então seria assim com a
música do sertão. Juraildes que chega aqui cantando o universo da realidade
dele, lá do lugar onde não tem mar, no Tocantins, faz com essa beleza, clareia
como se a gente tivesse ouvindo o mar barulhando e ele poetizando, cantando um
galope na beira do mar.”
Xangai e Ton Ton Flores/ Foto: Luiza Audaz |
Cada aldeia tem seu jeito de expressar sua cultura e o
espetáculo daquela noite cantava a nossa, o sertão que nos criou e que nos
desperta um pertencimento romântico. Encerrou-se a apresentação e o público
depois de tantas imagens sertanejas deixadas pelos senhores das cantorias e já
tão presentes no imaginário coletivo da cidade, foi para casa com a vontade de
ver vagalumes, dormir com coachos no pé da porta e no outro dia, cantar mais
uma canção com o sabiá.
*Produtor Cultural e Coordenador do Centro de Cultura
*Produtor Cultural e Coordenador do Centro de Cultura
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