Por Mariana Kaoos
Foto: Mariana Kaoos |
Era hora do recreio. Depois de
tanto tempo fica difícil imaginar a estação do ano, mas fazia sol e os pássaros
cantavam por entre as inúmeras árvores daquele colégio de freiras. A biblioteca
era uma das melhores da cidade. A menina dera início à sua vida literária por
lá, lendo a bibliografia de Paulo Coelho e mais alguns livros avulsos que lhes
chamavam a atenção. Mas naquele recreio de sol ela decidiu fazer diferente. A
menina morava em Ilhéus e quando pequena ia muito à roça de cacau da família,
onde se deparava com os personagens e o mundo místico grapiúna. Naquela
fatídica manhã, ela chegou para a "tia" loira da biblioteca de unhas
vermelhas e que cheirava a cigarro e disse:
- Tia, hoje eu vou de Jorge Amado. Você tem Gabriela Cravo e Canela?
- Você esta maluca, menina? É claro que eu tenho Jorge Amado, todos os livros
dele, por sinal. Mas eu não vou deixar você pegar nenhum não!
- E por que não?
- Porque você só tem dez anos de idade. Jorge Amado aborda temas muito sexuais e violentos e além disso, ele não é para você. Você não pode ler Jorge e pronto.
- E por que não?
- Porque você só tem dez anos de idade. Jorge Amado aborda temas muito sexuais e violentos e além disso, ele não é para você. Você não pode ler Jorge e pronto.
Daquele dia em diante a menina se enveredou pelo mundo da literatura. Passou
por João Ubaldo Ribeiro, Nelson Motta, chegou até a ler João Cabral de Melo
Neto, mas nunca mais procurou por qualquer obra de Jorge Amado. Teria ela tido
uma percepção de vida maior caso tivesse começado a lê-lo aos dez anos ?
Esperando Jorge!
Doze anos depois a menina se encontra na metrópole paulista, enveredada nos
caminhos da poesia concreta e perdendo a vista ao olhar para os arranha-céus.
Numa tarde de sol e chuva (na roça dizia-se que dias assim era o casamento da
rapousa com a viúva) ela pegou o "tatu de aço" rasgando o subsolo da
capital em direção à Estação da Luz.
Chegando lá, caminhou rumo ao prédio de 1901, todo importado da Irlanda, que
abarcava desde a estação de trem até o Museu da Língua Portuguesa. Logo na entrada,
três ônibus escolares ocupavam toda a parte do estacionamento. Entrou para
comprar o ingresso, ao preço de R$6,00 a inteira, e foi conferir o que o museu
tinha para lhe mostrar.
Ao entrar no elevador, que executava uma música de Arnaldo Antunes como som
ambiente, o ascensorista logo informou:
- Você está na sessão de 16:15, não é?
- Sim, por quê?
- Porque o terceiro andar é marcado por tempo, você precisa estar lá a essa
hora, mas não deixe de ir, a praça da língua é muito interessante. Por enquanto
te deixo aqui no primeiro andar, que é a nossa exposição temporária sobre Jorge
Amado.
A menina sorriu e um pouco se assustou. Sempre reconheceu a grandiosidade do
escritor, seu renome internacional, a quantidade de homenagens que recebeu ao
longo da vida, mas dai a vir para o sudeste brasileiro e dar de cara com uma
exposição só para o autor baiano era demais. O ano de 2012 marcaria o
centenário de Jorge, caso ele estivesse vivo. O Museu da Língua Portuguesa
resolveu celebrar a sua obra que ficará exposta ao longo do mês de junho,
contemplando desde seus livros, a versões feitas para a televisão e até para o
cinema.
Ao entrar na galeria ela encheu os olhos de lágrimas de emoção. Com várias
recepcionistas no ambiente, devidamente uniformizadas, vestindo a camisa
"Jorge Amado é Universal" (frase que dá nome a exposição), ela pôde
observar enorme caixotes de feiras, daqueles de madeira que servem para carregar
frutas, com os nomes das obras de Jorge Amado. Embora o salão estivesse lotado
de crianças entre 9 a 12 anos, o silencio era quase que absoluto. Pareciam
estar maravilhados com a obra dele.
Desde pequena ouvia das coisas que Jorge tinha escrito. Eram romances como "Terras do Sem Fim", que contava a história dos magnatas do cacau e da briga
entre duas nobres famílias da região de Ilhéus a outras abordagens, como "Capitães de Areia", que trata dos meninos de rua. Sabia que por ser o seu
centenário, Jorge seria homenageado em outros locais, como no Centro Histórico
de Salvador e em Ilhéus, no mês de agosto.
Andando devagar pelo salão, a menina que já não era mais menina, mas quase uma
mulher, se atentou para os detalhes que compunham a sua obra. Desde objetos
sagrados que integram o sincretismo religioso que há na Bahia e na sua obra, a
fotos históricas do escritor com poetas, músicos e outros escritores. Viu uma
foto de Jorge com Jards Macalé, jovem e lindo. Andou mais um pouco e achou
outra dele com o poetinha Vinicius de Moraes, logo mais no fim foi surpreendida
não só por imagens, mas também por uma carta que Dorival Caymmi mandou para
ele, quando estava no exterior. Jorge e Dorival tinham uma amizade muito forte.
Eram ogãs do mesmo terreiro de candomblé, em Salvador e falavam de coisas muito
parecidas em suas obras.
A menina mulher, que não era da pele preta, procurou saber quem eram os
organizadores da exposição. Parece que a organização que ficou por conta da Nacked
& Associados Mercado Cultural sob direção geral de William Nacked tiveram a
preocupação de retratar de forma muito autêntica o que Jorge passava. Em meio a
mais de duzentas garrafas de dendê com o nome de seus personagens, a
prateleiras com as primeiras edições de seus livros, a interatividade que o
museu proporcionou nessa exposição foi de um realismo fantástico
impressionante.
Apesar do senso comum que acha que museu é lugar feito para guardar coisas
velhas e que o público frequentador é de um nível social e cultural mais
elevado, o Museu da Língua Portuguesa veio para quebrar um pouco desse
estereótipo. Nesse mesmo dia, tinha uma menina roqueira, com os cabelos todo
cor de rosa e também tinha capoeirista que foi conferir a exposição, sem contar
as professoras, os monitores e as inúmeras crianças que pareciam estar se
encontrando com as mensagens de Jorge e a tecnologia aliada a ela.
Ao fim da tarde, maravilhada com o que viu na exposição com olhos de menina, a
mulher em que se transformara pensou que talvez a partir de agora seja a hora de
romper a barreira da censura e de degustar o que Jorge tem a dizer. Talvez ela
se encontre nas suas palavras e nas suas vivências, talvez não. De qualquer
forma, ela saiu de lá entendendo um pouco mais do universo das palavras e do
poder popular que Jorge Amado tem. Sorri para ela e me despedi, aquela menina
que outrora tinha colocado o escritor um pouco de lado, decididamente tinha
ficado para trás.
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