quinta-feira, 14 de junho de 2012

Amando Amado, amém

Por Mariana Kaoos

Foto: Mariana Kaoos
Era hora do recreio. Depois de tanto tempo fica difícil imaginar a estação do ano, mas fazia sol e os pássaros cantavam por entre as inúmeras árvores daquele colégio de freiras. A biblioteca era uma das melhores da cidade. A menina dera início à sua vida literária por lá, lendo a bibliografia de Paulo Coelho e mais alguns livros avulsos que lhes chamavam a atenção. Mas naquele recreio de sol ela decidiu fazer diferente. A menina morava em Ilhéus e quando pequena ia muito à roça de cacau da família, onde se deparava com os personagens e o mundo místico grapiúna. Naquela fatídica manhã, ela chegou para a "tia" loira da biblioteca de unhas vermelhas e que cheirava a cigarro e disse:

- Tia, hoje eu vou de Jorge Amado. Você tem Gabriela Cravo e Canela?

- Você esta maluca, menina? É claro que eu tenho Jorge Amado, todos os livros dele, por sinal. Mas eu não vou deixar você pegar nenhum não!

- E por que não?

- Porque você só tem dez anos de idade. Jorge Amado aborda temas muito sexuais e violentos e além disso, ele não é para você. Você não pode ler Jorge e pronto.

Daquele dia em diante a menina se enveredou pelo mundo da literatura. Passou por João Ubaldo Ribeiro, Nelson Motta, chegou até a ler João Cabral de Melo Neto, mas nunca mais procurou por qualquer obra de Jorge Amado. Teria ela tido uma percepção de vida maior caso tivesse começado a lê-lo aos dez anos ?



Esperando Jorge!

Doze anos depois a menina se encontra na metrópole paulista, enveredada nos caminhos da poesia concreta e perdendo a vista ao olhar para os arranha-céus. Numa tarde de sol e chuva (na roça dizia-se que dias assim era o casamento da rapousa com a viúva) ela pegou o "tatu de aço" rasgando o subsolo da capital em direção à Estação da Luz.

Chegando lá, caminhou rumo ao prédio de 1901, todo importado da Irlanda, que abarcava desde a estação de trem até o Museu da Língua Portuguesa. Logo na entrada, três ônibus escolares ocupavam toda a parte do estacionamento. Entrou para comprar o ingresso, ao preço de R$6,00 a inteira, e foi conferir o que o museu tinha para lhe mostrar.

Ao entrar no elevador, que executava uma música de Arnaldo Antunes como som ambiente, o ascensorista logo informou:

- Você está na sessão de 16:15, não é?

- Sim, por quê?

- Porque o terceiro andar é marcado por tempo, você precisa estar lá a essa hora, mas não deixe de ir, a praça da língua é muito interessante. Por enquanto te deixo aqui no primeiro andar, que é a nossa exposição temporária sobre Jorge Amado.

A menina sorriu e um pouco se assustou. Sempre reconheceu a grandiosidade do escritor, seu renome internacional, a quantidade de homenagens que recebeu ao longo da vida, mas dai a vir para o sudeste brasileiro e dar de cara com uma exposição só para o autor baiano era demais. O ano de 2012 marcaria o centenário de Jorge, caso ele estivesse vivo. O Museu da Língua Portuguesa resolveu celebrar a sua obra que ficará exposta ao longo do mês de junho, contemplando desde seus livros, a versões feitas para a televisão e até para o cinema.

Ao entrar na galeria ela encheu os olhos de lágrimas de emoção. Com várias recepcionistas no ambiente, devidamente uniformizadas, vestindo a camisa "Jorge Amado é Universal" (frase que dá nome a exposição), ela pôde observar enorme caixotes de feiras, daqueles de madeira que servem para carregar frutas, com os nomes das obras de Jorge Amado. Embora o salão estivesse lotado de crianças entre 9 a 12 anos, o silencio era quase que absoluto. Pareciam estar maravilhados com a obra dele.

Desde pequena ouvia das coisas que Jorge tinha escrito. Eram romances como "Terras do Sem Fim", que contava a história dos magnatas do cacau e da briga entre duas nobres famílias da região de Ilhéus a outras abordagens, como "Capitães de Areia", que trata dos meninos de rua. Sabia que por ser o seu centenário, Jorge seria homenageado em outros locais, como no Centro Histórico de Salvador e em Ilhéus, no mês de agosto.

Andando devagar pelo salão, a menina que já não era mais menina, mas quase uma mulher, se atentou para os detalhes que compunham a sua obra. Desde objetos sagrados que integram o sincretismo religioso que há na Bahia e na sua obra, a fotos históricas do escritor com poetas, músicos e outros escritores. Viu uma foto de Jorge com Jards Macalé, jovem e lindo. Andou mais um pouco e achou outra dele com o poetinha Vinicius de Moraes, logo mais no fim foi surpreendida não só por imagens, mas também por uma carta que Dorival Caymmi mandou para ele, quando estava no exterior. Jorge e Dorival tinham uma amizade muito forte. Eram ogãs do mesmo terreiro de candomblé, em Salvador e falavam de coisas muito parecidas em suas obras.

A menina mulher, que não era da pele preta, procurou saber quem eram os organizadores da exposição. Parece que a organização que ficou por conta da Nacked & Associados Mercado Cultural sob direção geral de William Nacked tiveram a preocupação de retratar de forma muito autêntica o que Jorge passava. Em meio a mais de duzentas garrafas de dendê com o nome de seus personagens, a prateleiras com as primeiras edições de seus livros, a interatividade que o museu proporcionou nessa exposição foi de um realismo fantástico impressionante.

Apesar do senso comum que acha que museu é lugar feito para guardar coisas velhas e que o público frequentador é de um nível social e cultural mais elevado, o Museu da Língua Portuguesa veio para quebrar um pouco desse estereótipo. Nesse mesmo dia, tinha uma menina roqueira, com os cabelos todo cor de rosa e também tinha capoeirista que foi conferir a exposição, sem contar as professoras, os monitores e as inúmeras crianças que pareciam estar se encontrando com as mensagens de Jorge e a tecnologia aliada a ela.

Ao fim da tarde, maravilhada com o que viu na exposição com olhos de menina, a mulher em que se transformara pensou que talvez a partir de agora seja a hora de romper a barreira da censura e de degustar o que Jorge tem a dizer. Talvez ela se encontre nas suas palavras e nas suas vivências, talvez não. De qualquer forma, ela saiu de lá entendendo um pouco mais do universo das palavras e do poder popular que Jorge Amado tem. Sorri para ela e me despedi, aquela menina que outrora tinha colocado o escritor um pouco de lado, decididamente tinha ficado para trás.

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