Por Mariana Kaoos e Maria Eduarda Carvalho
“Paris, 20 de outubro de 1848
Meu amor,
Sinto muito a tua falta. A cidade de Paris é linda, as luzes da cidade,
as pessoas são tão amáveis. Essa é a torre Eiffel que lhe falei, é difícil
acreditar que ela tenha sido construída por homens tamanha a sua grandiosidade.
Com amor, Alice
Ps: Lembranças a seu pai e sua mãe”
Quinta-feira, a iluminação impecável focou na atriz Shirley Ferreira que
vestida de azul sobre uma pilha de malas que compunha o cenário, declamava
entre a movimentação dos outros atores e o som marcante da francesa Édith Piáf
o trecho acima.
Distante geográfica e históricamente do teatro francês marcado por
Édith, o Centro de Cultura Camillo de Jesus Lima foi palco de Bagunçu, peça
apresentada pela Companhia Operakata de Teatro. Noite fria para um Verão
Cênico, mas que foi aquecida pela luz do candeeiro de Belinha, a personagem
principal do enredo que tem sua vida transformada após encontrar alguns objetos
da fazenda do Coronel Domingos de Oliveira, que foi invadida e saqueada num
caso de vingança entre famílias.
O diretor e roteirista responsável pela obra, Gilsérgio Botelho, em
entrevista ao O Rebecetê explica um pouco mais sobre a história de Bagunçu: “É um
espetáculo que fala de resignação, que fala de vida, eu acho que nessa rotina
tão atribulada que a gente vive hoje em dia a gente esquece de pequenos gestos.
E o espetáculo fala de resgate, é muito bonito, bacana – eu sou suspeito
pra falar – mas é isso, é uma obra que fala de vida de redenção.”
O ponto de partida da ficção é a já conhecida Tragédia do Tamanduá, fato
verídico ocorrido em Belo Campo onde duas famílias brigaram por uma vaca
gerando não só uma rixa como uma sucessão de mortes, que rendeu outros filmes e
peças. Sobre essa relação, a atriz Daniela Lisboa que participou também de
outras narrativas envolvendo a tragédia fala um pouco mais da diferença entre
as obras: “Na hora de compor Bagunçu eu esqueci completamente do filme A
Tragédia do Tamanduá porque apesar de ser um tema central, são linguagens
completamente diferentes. Bagunçu tem um foco de sonhos, de transformação, de
vida e morte, de amor e A Tragédia não, é uma história mais intensa, que ate
hoje deixa vestígios na cidade onde ocorreu de fato. Não que Bagunçu seja
desmerecido por ser ficção, mas são obras de arte completamente distintas”.
O preço popular (R$1,00 o ingresso) estimulou a superlotação do teatro
e Bagunçu acabou "bagunçando" as emoções do público suspenso entre o riso e o
choro e mais que isso, fascinados através da história de Belinha, que por vezes
era Alice e que também eram todos os atores em cena contracenando entre si,
passando todos pelos mesmos personagens, terminando uma frase que o outro
começara.
Outro ponto alto da peça foi a apresentação ao vivo dos músicos Felipe
Massumi e Cristiano Martins, que contracenaram em som com os atores, causando
uma sensibilidade maior no público. De acordo com Massumi, “essa peça muda
muito o perfil psicológico dos personagens, então eu tenho que encarnar milhões
de personagens porque eu não posso tocar como expectador, eu toco como ator,
mas eu sou músico (risos) e nem estou na cena em si, então é uma coisa muito
engraçada porque eu tenho que sugar do ator tudo que ele quer expressar, jogar
no instrumento e tentar passar isso ao público da maneira mais clara possível.
É um espetáculo composto por duas linguagens, a teatral e a acústica que é
quando reproduzimos no palco esses sons que bebem na fonte dos teatros de
cabaré e do teatro francês”.
O espetáculo estreado originalmente em 2008, ainda terá outras
apresentações no dia 25 de Março novamente no Centro de Cultura e no dia 29 no
Sesc de Vitória da Conquista.
O verão cênico e os contratempos
A Temporada Verão Cênico é uma parceria entre a Fundação Cultural do
Estado da Bahia com teatros privados, artistas e alguns veículos da mídia, que
estão promovendo desde o mês de Dezembro ate o fim de Fevereiro, uma
programação especial contando com 150 apresentações em diferentes palcos do
estado.
Com ingressos a preços populares, o Verão Cênico tem como objetivo
ampliar a criação teatral na Bahia, além de estimular a formação de plateia
tanto na capital, quanto no interior. Para Kécia do Prado, atuante no cenário
cultural de Vitória da Conquista como atriz há dez anos e uma das integrantes
de Bagunçu, é de extrema importância projetos como esse ocorrerem cada vez mais
no interior. “É muito difícil fazer teatro no Brasil e falando da nossa
realidade local é mais ainda, porém também é empolgante. Houve uma época em que
diversos grupos de teatro estavam atuando na cidade como o Caçuá e o da Sônia
Leite, mas a cultura teatral ficou estagnada por um tempo, só com o Operakata
atuando. Agora, acho que isso aos poucos está mudando. Com o Festival de Cenas
Curtas que ocorreu em novembro do ano passado, as pessoas voltaram a se sentir
mais estimuladas à criação e execução desses projetos. Tenho achado muito
bacana as peças que estão sendo apresentadas aqui todas as quartas, porque é
dia de semana, mas as pessoas estão vindo e se empolgando com o que está sendo
mostrado. Precisamos desses estímulos e dessas novas referencias no nosso
trabalho sempre”.
Para o público que assistiu a peça montada, a iluminação e sonoplastia
funcionando corretamente, o encanto certamente é maior, mas para quem está
atrás dos palcos, em um mês intensivo de trabalho, nem tudo são rosas. Varando
noite, levando equipamento pra lá e pra cá dentro do Centro de Cultura Camillo
de Jesus Lima, o responsável pela iluminação, Wan Dick, segurando uma escada
para desinstalar as luzes próprias do espetáculo revela que “entre mortos e
feridos todos se salvaram. Algo importante a se falar e que muita gente não se
atenta a isso é sobre os espaços em que essas peças estão acontecendo. O Centro
de Cultura, por exemplo, tem problemas seríssimos, o que acaba atrapalhando no
desenvolvimento de um trabalho. Precisamos em primeiro lugar cuidar mais dos
espaços. Outro local interessante é o Teatro Carlos Jeová, mas que também se
encontra jogado, descuidado. Felizmente conseguimos contornar os problemas, mas
o resultado não foi como esperávamos. Aconteceu lindamente, os atores estavam
impecáveis, acredito que o espetáculo seja eles e a interação do público, o
mais, vem apenas para agregar valores. Poderia ter sido diferente caso
houvessem mais equipamentos disponíveis, mas mesmo assim, foi ótimo”.
Após aplaudir de pé por vários minutos, o público satisfeito se reuniu
entre conhecidos para debater o conteúdo e a beleza da peça. A produtora
musical Leu Couto, sorrindo, afirmou que “a peça foi fantástica. O grupo
retratou muitíssimo bem a Tragédia do Tamanduá, só que tomando outra vertente.
Os atores são maravilhosos, as pessoas saíram emocionadas. É uma pena que a
cidade ainda esteja muito carente de peças dessa qualidade. É preciso que os
grandes empresários de Vitória da Conquista valorizem mais a arte local e
percebam o quanto agrega valor ter sua empresa vinculada a um patrocínio
cultural”.
Ao final, depois de uma noite linda, as coincidências ainda nos deu a
cereja do bolo, encontramos nos corredores uma Alice que num sorriso mais
emocionado que uma lágrima brincou que só lhe faltava “numa noite de lua clara
ir a Paris, encontrar seu amor perdido em sonhos de outrora”.
*"Alice foi ao teatro" foi originalmente postada no O Rebucetê em janeiro de 2012, mas havia desaparecido misteriosamente do nosso arquivo. Estamos disponibilizando-a mais uma vez e aproveitamos para pedir desculpas aos nossos leitores e principalmente à Cia Operakata de Teatro. Enfim, deliciem-se mais uma vez.
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