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Este
personagem polêmico da história recente do país cruzou meu caminho inúmeras
vezes nos últimos cinco anos, aparecendo em livros, documentários e,
especialmente, na execução pontual de suas músicas. Simonal ainda hoje é um
fenômeno peculiar no Brasil por dois motivos centrais. O primeiro, por um
talento musical e cênico incrível, datado em seu tempo, mas popular ao extremo.
Tinha uma capacidade de atrair o público de forma avassaladora, moldada a
partir de uma jogada de mídia assertiva. Como um Luan Santana elevado à quinta
potência, só que com talento. De outro lado, foi o bode-expiatório de um
episódio que expôs toda virulência e preconceito de um Brasil cru, desnudado de
suas maquiagens, de um país de “homens
cordiais”, como bem dizia Sérgio Buarque de Holanda.
Wilson
Simonal de Castro (pai dos músicos Max de Castro e Simoninha)
foi um dos maiores showmens que o Brasil já teve, numa época em que
isso ainda precisava ser inventado por aqui. Chamou muito minha atenção que
alguém assim tenha passado em brancas nuvens à minha geração, que dele só
chegamos a conhecer, quando muito, a canção “País Tropical”,
e mesmo assim, referendada por ser uma música de Jorge Ben Jor.
Ícone do que ficou conhecido como “pilantragem”,
o cantor encarnava a figura do malandro carioca. Não o malandro dos morros, mas
o malandro da esperteza safa de quem transita por todo lado “tirando onda”, da
ginga inconfundível que dialogou magistralmente com as duas frentes musicais
mais importantes da sua época, embora totalmente antagônicas: a Bossa Nova e
a Jovem
Guarda.
Como
bem descreveu o escritor Ricardo Alexandre, em sua biografia sobre o cantor,
intitulada Nem Vem Que Não Tem: a vida e o veneno de Wilson Simonal:
“produtores, fãs, familiares, amigos, detratores, gente de televisão, colegas
músicos, técnicos de som, não há quem não ressalte, sempre com olhos
arregalados (...) o suingue infernal, indescritível e fora de série de
Simonal”. De fato, muitas décadas depois, eu mesmo vi isso acontecer.
Nos
tempos de hoje, em que a música comercial nos empurra doses cavalares (e
questionáveis) de sons pouco criativos e massificantes, elegendo quatro ou
cinco gêneros como se mais nada houvesse no mundo, a capacidade de percepção
apurada da população é recorrentemente subestimada. Recentemente, coordenei uma
atividade em espaço público cujo evento tinha como fundo musical algumas
músicas selecionadas. Muitas pessoas da comunidade local me perguntaram quem
cantava, porque achavam o som muito bom, “estiloso” e “moderno”. Queriam saber
sobre as versões de músicas conhecidíssimas como “Madalena”,
Ivan Lins, e "Na Baixa do Sapateiro", de Ary Barroso, executadas de
forma tão diferente e rítmica. Era Simonal.
O
artista multifacetado descobriu seu potencial quando serviu ao exército e daí
em diante não parou mais. Era capaz de movimentar plateias imensas e dominá-las
com um carisma brilhante num tempo em que isso não era nada comum; cantar
inglês perfeitamente, aprendido somente de ouvir (vide show com
a diva Sarah
Vaughan); ter um talento respeitado tanto por bossanovistas e
jovem-guardistas, e ser, à sua época, um fenômeno à altura de Roberto
Carlos no auge do iê-iê-iê. Estas
eram apenas algumas de suas características, e, ironicamente, num país como o
nosso, com uma ressalva importante: era negro, filho de empregada doméstica e
viveu boa parte da vida pobre-pobre de marré-de-si.
Com
o sucesso crescente, o patrimônio se avolumando e dono do maior contrato de
publicidade até então assinado no país (com a empresa Shell), Simonal se
envolveria num “embrulho” maior que ele mesmo, capaz de colocá-lo na pior
situação que alguém poderia se encontrar no meio artístico em plena Ditadura
Militar.
Em
1971, o cantor, desconfiado de seu contador, acusou-o de desfalque,
demitindo-o. O suposto culpado moveu uma ação trabalhista contra Simonal e este
fez a pior coisa que poderia ter feito: pediu a dois amigos militares para
conseguir uma confissão do contador. Os soldados o levaram para as dependências
do famigerado DOPS e o torturaram.
Simonal
acabou sendo acusado de sequestrador e entrou para a história como dedo-duro,
um estigma que colou-se a sua imagem até o fim da vida. Nenhum artista queria
mais tê-lo por perto, cantar, tocar, falar, ser visto perto do homem que até
pouco antes era o maior espetáculo do Brasil. Perdeu o respeito,
patrocinadores, shows agendados e o nome. Foi relegado violentamente ao
ostracismo, sem direito a voz ou vez. Ser considerado delator em plena Ditadura
Militar era pior que qualquer outra coisa. Simonal foi julgado culpado (formal
e informalmente) pelo sequestro. Nos autos, era referido como colaborador das
Forças Armadas e informante do DOPS.
Wilson
Simonal, como um fenômeno brasileiro só pode ser compreendido no seu contexto.
Em primeiro plano, foi a expressão de um talento individual e popular, um homem
negro orgulhoso de ter vencido num país que o via com espetacular respeito. Um
país cujo discurso da miscigenação e da tolerância racial não correspondia à
realidade, muito menos que hoje. Seu status de artista era conveniente às
exceções e Simonal transitava soberano, sob o manto do “todo onipotente da
pilantragem”, termo que encarnava materialmente o “jeitinho
brasileiro”. Num segundo momento, passou a ser a concretização dos medos,
das neuroses e de tudo aquilo que o país “politizado-contra-a-repressão” não
tolerava: um delator (na verdade, sem direito real de resposta sob sua própria
situação), um amigo da ditadura (por ter sua história ligada aos tempos de
exército) e principalmente, um homem sem caráter, capaz de atrocidades, de
sequestro, como, aliás, dizia-se à boca pequena, era passível de acontecer,
sendo ele um homem vindo da favela, de um ambiente pernicioso. Não que isso
aconteça com todos da favela, Deus-me-livre, mas ficou claro que foi o caso
dele. Entre todo o revanchismo sobre Simonal era isso que pensava o Brasil.
Lógico, nada disso dito tão abertamente assim, mas tudo estava ali, visível acima
das entrelinhas.
Somente
há muito pouco tempo, Simonal deixou de ser um tabu. Começou-se mesmo a
questionar se o caso do sequestro não foi apenas um “vacilo”, um ato impensado
que se saiu do controle. Se houve mesmo a necessidade de descer sobre ele o
manto do esquecimento e de tamanha repulsa. Principalmente, se a voz que o
calou não foi de fato a do medo e do preconceito.
Simonal
morreu em 25 de julho de 2000. Magro, alcoólatra, amargo e esquecido. Lutando
ainda, com documentos à mão, para provar o que ninguém mais lembrava ou queria
saber. Seu talento, no entanto, ainda marca indelevelmente a nossa história
musical, embora sob uma sombra espessa que ainda hoje paira e o esconde.
Para
quem reconhece um talento, vale a pena conhecer.
Fica
a dica.
Confiram o trailler do documentário:
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