Por Rafael Flores
O cobrador do ônibus, que ficou
de me avisar o ponto que eu pararia para descer no Recife Antigo cochilou
enquanto ouvia Aviões do Forró com o volume estourando os fones de ouvido.
Passei quilômetros do ponto pretendido e saltei no início de um viaduto. Apreensivo
com os carros que passavam em alta velocidade e com os taxistas que me
ignoravam, atravessei a rodovia com os olhos vidrados em um boteco, cujas
portas estavam fechadas, mas com indícios de movimento no seu interior. Com o
forte e belo sotaque pernambucano, a moça gorda indicou pelas frestas da porta
do bar que eu teria que passar por baixo do viaduto para conseguir alcançar um
ponto de ônibus, alertando para o perigo da região, tanto em relação ao grande
fluxo de automóveis, quanto ao alto número de assaltos diários.
Me assustando com cada barulho
que surgia no caminho, atravessei aquele ermo, onde apenas as luzes
intinerantes dos carros deixavam a mostra os grafites nas paredes. Na cabeça
carregava “A noite mais linda do mundo”, de Odair José, então a assobiei para amenizar
o medo, tentando não estalar os dedos. Chegando tortuosamente ao outro lado, o
segurança de uma associação atlética, cuja entrada dividia espaço com o ponto
de ônibus, foi o segundo a me alertar sobre a grande possibilidade deu ser
assaltado por ali. Não poderia ligar para um táxi, a operadora sugara meus
créditos e bônus com o deslocamento de estados e não havia orelhão por
perto.
Quando minhas pernas já começavam
as ficar trêmulas, um senhor taxista, ao meu sinal apreensivo, parou seu carro
em um local proibido. “Não sei porque parei aqui, visse? Esse lugar é uma
merda, só dá puta e ladrão, vários colegas assaltados por aqui, mas alguma
coisa me mandou parar por você, eu nunca paro desse jeito”.
Fiquei impressionado por alguns
segundos com a providência divina e sorri aliviado, agradecendo-o pela bondade.
Logo depois de dizer pra onde iria me perdi em pensamentos soltos e me deparei
com um boneco cabeçudo do Elvis Presley, o qual se balançava em baixo do
retrovisor. Ao fundo uma voz grave cantava se lamentando da má sorte da vida.
“Eu conheço essa voz, é o Evaldo Braga?”, perguntei, voltando a atenção para o
senhor de boina que me guiava. Bastou eu levantar a questão para arrancar um
sorriso do motorista. “Quantos anos você tem, meu filho? 20? Impossível, isso é
música de gente velha”.
Contei que cresci ouvindo Odair
José e Evaldo Braga com meu pai e mais algumas referências adquiridas com meu
tio cantador, como Waldick Soriano e Vicente Celestino. “Pois meus filhos,
todos já com mais de trinta, falam que isso é Brega”. "É brega sim e daí?
É brega por falar as coisas de um modo simplista e verdadeiro, isso não é
bonito?" Foi o que eu disse mostrando meu pequeno conhecimento de
causa.
Contei ainda que a cidade onde
nasci era inicialmente distrito de Caetité, cidade natal do mestre Soriano.
Ouvia com atenção os segundos de cada música que o doce senhor me mostrava,
enquanto me guiava pelas ruas escuras do Recife. Ele começou a discorrer sobre
a história de vida e da morte trágica do “ídolo negro”, como era conhecido
Evaldo Braga. Somando a isso, acrescentou uma frase, que não me lembro
claramente, era algo sobre fazer música para o povo entender, sem se importar
com o que pensa a crítica de elite.
Na época esses cantores, que
carregavam de romantismo suas canções, eram muito consumidos no nordeste e
idolatrados a níveis beatlemaníacos, suas letras invadiam as casas através do rádio e da boêmia, através dos bailes. “Odair José mandou a mulher parar de
tomar a pílula? Você sabe o que significou falar sobre isso em uma música numa
época extremamente conservadora?”, foi só ouvir essa frase pra que eu pudesse
entender como um taxista pode ser mais surpreendente e interessante do que
qualquer aula na minha universidade.
O que mais queria naqueles minutos
era aproveitar a paisagem da cidade-mangue e continuar a ouvir as crônicas do
taxista. Estava disposto a ignorar a minha apresentação de um artigo sobre
indie rock no outro dia e até pagaria o dinheiro que não possuia na carteira,
mas eu tinha uma cerveja marcada e já estava atrasado pra caramba por conta de
toda a odisséia.
No dia seguinte, no evento que me
fez estar na cidade, presenciei uma palestra sobre a história da música popular
brasileira. Palestra essa que não me apeteceu, pois tudo que eu queria era
voltar para aquele táxi.
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