quinta-feira, 8 de novembro de 2012

E que me sobe às faces e me faz corar...


Mariana Kaoos


Chovia na terça feira à tarde. O Centro de Cultura aglomerava no chão do pátio algumas poças d’água, que se remexiam com as pisadas dos inúmeros estudantes do Ensino Médio da rede pública de Vitória da Conquista. Todos eles, com sua adolescência pulsando nas veias, gritavam, mexiam uns aos outros, paqueravam entre si, exaltavam-se com a programação escolhida. O evento em questão é a Mostra Itinerante Jorge Amado, projeto que vem rodando 17 cidades da Bahia, exibindo filmes baseados na obra do escritor e que tem como foco causar essa aproximação dos estudantes com o autor, com a literatura e o cinema.




Jorge não é meu escritor preferido. Por diversos motivos, nunca me interessei avidamente em ler toda a sua obra, mas confesso que esse ano, com o seu centenário e a sua figura sendo exposta de maneira excessiva em todos os cantos, algo nele me chamou a atenção. Em junho, tive o prazer de presenciar uma exposição em sua homenagem no Museu da Língua Portuguesa, na capital paulista. Em agosto, também conferi de perto o Festival Amar Amado, em Ilhéus. Críticas infraestruturais à parte, ambas as circunstâncias mostraram as palavras de Jorge a mim e, pela primeira vez e de forma intensa, elas me despertaram e trouxeram consigo um sentimento de pertencimento, como se seus escritos falassem um pouco da minha história, dos meus lugares, dos que me cercam.


Portanto, a recém-convivência com o universo “amadiano” foi o principal motivo que me mobilizou a estar no Camilo de Jesus Lima com aqueles estudantes juvenis. No auditório, as cadeiras do teatro estavam todas ocupadas. Do lado esquerdo (onde, infelizmente, eu me encontrava), batidas musicais que lembravam o pagode baiano ressoavam em meio à balbúrdia. Do lado direito, podia-se notar todo mundo se abanando com o flyer do evento oferecido logo na entrada. Já as cadeiras do meio, pareciam comportar os mais interessados. Todos conversando um pouco mais baixo, aguardando o início do filme.


Que todos os tremores me vem agitar...


E assim foi. Após a chegada dos alunos das sete escolas convidadas, as luzes se apagaram e, ao som de “O Que Será, Que Será” de Chico Buarque (porém, interpretada por Simone), o nome do filme apareceu: DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS. Todos gritaram bastante. Talvez não tivessem noção, mas naquele momento, aqueles estudantes, assim como eu, estávamos prestes a assistir a um dos maiores clássicos do cinema nacional.


Na época do seu lançamento, em 1976, Dona Flor foi recordista de público, levando em torno de 10 milhões de pessoas ao cinema. Bruno Barreto assumiu a direção e o elenco contou com grandes nomes da dramaturgia que se perpetuam até hoje como a maravilhosa Sônia Braga, José Wilker e Mauro Mendonça. Se comparado aos filmes atuais, o áudio da película é precário, as cenas de corte são mais lentas, causando, em alguns momentos, monotonia na trama.


Dividido em três partes, o filme envolve a platéia logo no início, mostrando a morte de Vadinho e trazendo uma retrospectiva da sua vida com Dona Flor. Ele, um típico malandro, que trai a mulher, é viciado em jogo e bebida, mas pelo seu charme e carisma, se torna o personagem mais engraçado e querido de toda a história.


Logo após, o enredo segue mostrando a reconstituição psicológica e emocional de Dona Flor e seu casamento com Doutor Teodoro. Essa talvez seja a parte mais monótona do filme, esfriando assim os ânimos da audiência. Por fim, a trama volta a esquentar com reaparição de Vadinho e pelo jeitinho que Dona Flor dá para ficar com ambos e finalmente encontrar um equilíbrio entre o amor amadurecido e paixão carnal avassaladora.


Que brota à flor da pele, será que me dá...


Meio irritada com a barulheira no início do filme, demorei um pouco para me concentrar. Mas, deixando-me envolver pela história, e com o barulho cessando aos poucos, entreguei-me totalmente submersa à trajetória dos personagens, à direção de Bruno Barreto e pela imaginação de Jorge Amado.


Sozinha e ao mesmo tempo inclusa na turba, me permiti mais uma vez a “adolescer”. Fiquei corada com os instantes de nudez, indignei-me com uma cena específica de violência em que Vadinho bate em Dona Flor, dei risada e até gritei nos momentos em que o sexo era explícito. Aos 22, me deixei contagiar pelos de 17 anos para assistir o filme com o olhar das pessoas dessa idade. Interagi a todo o momento com o que estava diante dos meus olhos, saí contemplativa.


Apesar de o livro ser de 1966 e o filme de 1976, ambos permanecem vivos, atuais. Jorge Amado parece conseguir trazer um toque atemporal em algumas de suas obras, além de buscar no popular a essência de seus personagens. Dos inúmeros adolescentes presentes na sessão, em algum momento muitos se viram na pele de Teodoro, de Vadinho ou Dona Flor. Eles, assim como eu, certamente tiveram a curiosidade despertada para conhecer um pouco mais sobre obra do escritor baiano.


Ao fim do filme todos bateram palmas. Eu, tranquila, satisfeita e com as safadezas de Vadinho na cabeça (é lógico que tinha de ser ele), caminhei pela chuva escutando, claro, uma marchinha de carnaval.

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