Por Mariana Kaoos
Apesar de ser a maior cidade do sudoeste baiano e abarcar
uma população em torno de 350 mil habitantes, Vitória da Conquista ainda pode
ser considerada uma cidade retrógrada no que diz respeito a “moral e bons
costumes” sociais. Isso é expresso através do conservadorismo, principalmente
religioso, que paira na cidade. Para cada bairro, há uma paróquia representando
a igreja católica e, no mínimo, três igrejas evangélicas que realizam seus
cultos diariamente. Abarcando diversos segmentos místicos, é possível traçar um
perfil do público que frequenta cada doutrina. Para os alternativos, acadêmicos
e eruditos intelectuais da cidade a escolha gira sempre em torno do mesmo
princípio, o candomblé.
Objeto de trabalhos acadêmicos e matérias jornalísticas,
como a feita para a TV Uesb, os terreiros de candomblé, se encontram em bairros
mais afastados da cidade. Conquista abriga em torno de 200 casas de cultos de
matrizes africanas, o que engloba o candomblé, a umbanda e uma série de casas
sem culto definido. Todos eles, na verdade, por muitas vezes cultuarem as
mesmas entidades, acabam sendo confundidos. No entanto, a diferença é muito
profunda. Enquanto o candomblé tem como foco o culto aos orixás, a umbanda se
apega mais aos ancestrais, caboclos, e eguns (pessoas que já morreram). É claro
que também é possível observar cultos a essas entidades em casas de candomblé,
mas quando acontece, é devido a alguma herança do pai de santo. Isso ocorre com
muita frequência nos terreiros baianos em decorrência dos negros bantos que aqui residiram. Lá na
África, havia o culto aos seus ancestrais que aqui, viriam a serem os índios.
Para quem pensa que o candomblé da forma como é hoje em dia
foi trazido pelos escravos africanos está muito enganado. Na verdade, em seu
continente de origem, cada região centrava-se em apenas um orixá e em formas
particulares de celebração. Na região de Ketu, cultuava-se Oxóssi, na de Efan,
o misticismo era em torno de Oxum, já na região de Oió, o culto era em torno de
Xangô e assim por diante. Essas peculiaridades foram trazidas para o
Brasil como nações ou famílias e cada casa se insere nas características e
modalidades de uma delas. O candomblé que nós conhecemos nasce propriamente no
Brasil, ainda pertencendo às nações africanas, mas agregando todos os orixás
numa só casa.
Curumim chama Cunhatã que eu vou contar
Há muito mais de 500 anos, quando os europeus acreditavam
que a Terra era quadrada e que os oceanos, ainda pouco explorados, abarcavam monstros
e aberrações marinhas, havia umas terras, do outro lado do mundo, com suas
florestas tropicais e seus habitantes de pele dourada e cabelos escorridos,
cheia de mistérios e cultos. A tal terra era chamada de Pindorama e seus
habitantes, que mais adiante seriam denominados índios, tinham uma forte
ligação com ela, tornando-a parte constitutiva das suas raízes e crenças.
Assim como toda grande terra, haviam diversas tribos, que
mesmo parecidas, se distinguiam de forma abrupta. Uma delas se chamava Tupinambá.
Eles habitavam o litoral brasileiro e possuía uma língua em comum, o Tupi.
Tinham como principal característica a antropofagia, ou seja, eram canibais. Os
Tupinambás acreditavam que ao consumir os restos mortais dos guerreiros que
venciam, estariam consumindo também sua força, inteligência, habilidades
bélicas e beleza. Possuíam forte ligação com a terra e com seus deuses
cultuados, como o sol, a lua e os ventos.
Infelizmente, quando os europeus se deram conta de que a
terra era redonda e não existiam monstros marinhos, mas sim a possibilidade de
desbravar o mundo e conquistar novas terras, eles logo acharam Pindorama e suas
diversas tribos, incluindo os Tupinambás. E aí foram tempos de escravidão,
humilhação, imposição, catequização e dizimação. Das milhares de nações que
habitavam o país, só restam histórias da sua grande maioria. As poucas que
sobraram, se viram obrigadas a se modernizar para poder sobreviver.
Para além dos livros, fotos e pesquisas feitas sobre essa
época, outra opção de reverenciar e viver tudo isso é presenciando os cultos
para caboclos nos terreiros de candomblé.
Ainda tem caboclo debaixo da samambaia
“O caboclo é uma herança muito forte, pois ele é o dono do
Brasil. Essas terras são dele. Quando os negros, os escravos, chegaram ao país,
com seus cultos, já havia os índios. Então não há como cortar esse vínculo ou
não incorpora-lo à nossa religião”. Assim, de maneira serena começou a falar
Pai Loro, pai de santo há sete anos da casa Ilè Asé Omin T'Ògún.
Era domingo à tarde, fazia sol em Vitória da Conquista.
O terreiro de Pai Loro, da nação Ketu e que tem como patrono (orixá que
rege a casa) Oxaguiã se localiza no bairro Patagônia. A porta azul que guarda o
local já estava aberta para o público. Com uma vela branca na entrada, como
oferenda ao culto que iria ocorrer mais tarde, os filhos da casa já se
encontravam lá, todos de branco, conversando entre si.
A celebração do dia estava destinada aos caboclos. O
barracão, local onde ocorrem as cerimônias, estava arrumado com bandeirolas
brancas e cadeiras a postos para as entidades que logo mais viriam. No centro
do salão, onde os cultos acontecem, fica o pilão. Em toda casa de candomblé,
exatamente no meio dela, se encontra o Ari Asé, fundamentos que regem a casa.
No terreiro de pai loro, isso se localiza exatamente embaixo do pilão. As
entidades, além de pedir a benção, dançam em volta dele.
Pai loro, de roupa branca e um manto verde nos ombros que
rememorava a natureza e a cultura indígena, explicou que a nação AláKétú é muito
forte, pois foi a primeira a chegar ao Brasil. “O primeiro terreiro do país,
Ile Axá Socai, na Vasco da Gama, em Salvador, também é de Ketú e de Oxaguiã,
como o nosso aqui. Antes de ser iniciado nessa nação eu já tinha principiado no
culto de caboclo, já que as minhas origens maternas são de umbanda. O caboclo
chefe da nossa casa aqui é o Tupinambá da pena branca, que na verdade é uma
tribo”.
Por volta do por do sol as orações começaram. Inicialmente,
apenas com os filhos da casa e, após convite de Pai Loro, dentro do barracão,
com todos os presentes. Os rodantes entraram. Todos inicialmente acordados
começaram a dançar e cantar. Como num passe de encantamento, com uma cantiga
específica de caboclo, a maioria virou. Suas feições mudaram, a entonação da
voz, a energia no local. Sim, mesmo após 500 anos, naquele fim de tarde, foi
possível entrar em contato em caboclos como Pena Branca, Gentil e Jurema.
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Pela primeira vez num terreiro de candomblé, Malu Andrade,
de roupa de cor azul e com as mãos suando de apreensão, tratou de colocar seus
óculos de grau para não perder nada. Ávida, deixou-se confessar o quanto estava
encantada com aquilo tudo e como a energia que circulava o terreiro era de amor
e paz. “Sou brasileira, amo meu país e a história dele, mesmo que muitas vezes
sofrida. Enalteço momentos como esse em que além de estar aqui, entrando em
contato com entidades que regem meu ser, também posso acompanhar, através de um
ritual tão puro e bonito, um pouco da história do Brasil. Eu me ajoelho e peço
a benção para todas as entidades que estão aqui presentes hoje”.
Para os interessados, curiosos, religiosos, seguidores da
doutrina e afins, no dia sete de setembro, haverá festa de pomba gira na casa
de Pai Loro.
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Recentemente em Olinda(PE) uma comunidade evangélica tentou invadir e depredar um terreiro de candomblé, episódio esse que tem mobilizado muita gente e gerado bastante discussão acerca da liberdade de culto religioso. Confira a homenagem de Alessandra Leão, no Festival de Inverno de Garanhuns, a Nelson Mandela e aos povos de terreiro:
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Recentemente em Olinda(PE) uma comunidade evangélica tentou invadir e depredar um terreiro de candomblé, episódio esse que tem mobilizado muita gente e gerado bastante discussão acerca da liberdade de culto religioso. Confira a homenagem de Alessandra Leão, no Festival de Inverno de Garanhuns, a Nelson Mandela e aos povos de terreiro:
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