Da tragédia anunciada, à degradação crônica e, finalmente, à redenção musical. Como o álbum póstumo de Amy Winehouse é uma verdadeira honra àquilo que sempre deveria ter sido noticiado e celebrado: seu talento.
A morte de Amy Winehouse, em 23 de julho desse ano, veio repentina, ao passo que sem surpresas. Talvez uma das tragédias midiáticas mais perturbadoras, desde que cruzou oceanos com o single “Rehab”, em 2006 – que falava de sua relação íntima e conturbada com a depressão, bebida e drogas –, sua morte fora prevista e anunciada tantas vezes que o público em geral mal pôde evitar a confusão.
Parte do apelo de Winehouse se dava pelo humor e carisma com os quais ela tratava seus vícios, tanto que eles foram escrutinizados e massificados não apenas pela imprensa abutre, mas também pela indústria e seus próprios fãs. Por mais que se reconhecesse o imenso talento da britânica de voz rasgada e melancólica, não era raro se deparar com o dilema: “gostamos tanto de Amy por sua arte ou por seu jeito assumidamente alcoólico de ser?”
Eis que, obviamente, a controvérsia superou o que realmente importava, a música, e Amy Winehouse teve sua própria criação engolindo-a lenta e gradativamente: de promissora Diva Soul para “zumbi da reabilitação”. Não se noticiavam seus shows ou aparições, a não ser que estivesse tropeçando bêbada e/ou chapada por alguma droga. Algumas vezes era tão difícil de acreditar que alguém pudesse estar tão perdido diante de nossos olhos que cogitávamos a possibilidade da encenação, afinal, o Pop nos ensinou na segunda metade do século XX que é preciso nos chocar para que consumamos. Então, escolhemos o conforto da incredulidade, ao invés da indignação diante da degradação humana assistida, televisada, impressa e comercializada.
Se você não acredita em algo, você se sente livre da responsabilidade de compreendê-lo e, como somos regidos pela inércia, continuamos a assistir Winehouse se deteriorar, enquanto comprávamos seus álbuns, seus singles e, principalmente, ingressos para seus shows, afinal, a coitada pode morrer a qualquer momento e, por isso, é melhor assisti-la caindo pelas tabelas e estragando as notas das próprias canções, do que não vê-la nunca mais.
Enquanto alguns se embolavam no circo midiático, esperando o próximo vídeo de crack vazar na internet, outros se recolheram à espera daquilo que sempre importou: sua música. De “Back To Black”, seu segundo álbum lançado em 2006, para cá foram várias especulações, inclusive o esperado álbum de reggae; depois de períodos dentro-e-fora de clínicas de reabilitação, algumas performances meeiras (inclusive as no Brasil no primeiro semestre), estávamos sossegados com a ideia de que, talvez, Winehouse tivesse jeito e fosse viver longos anos conosco.
Tesouros Secretos
É exatamente por este motivo que “Lioness: Hidden Treasures”, seu álbum póstumo lançado no dia 2 deste mês, tem um interrupto sabor agridoce. Nunca fora necessário esforço (nem grande entendimento de inglês) para perceber que o humor contido nas canções de Amy encobriam espessas camadas de melancolia e certa dor. Se é válida a máxima sobre sorrir demais ser sinal de desespero, os mais sensíveis nunca deixaram de perguntar as razões pelas quais Amy sorria tanto. Talvez fosse por ser muito inglesa – ainda assim, que tipo de dor ela anestesiava com sorrisos, vodca e drogas?
Obviamente, “Lioness” não provê resposta alguma, pelo contrário, o álbum ratifica o mistério sobre a depressão e a subsequente falência de Winehouse. Produzido por Salaam Remi e Mark Ronson – principais produtores de “Frank” (2003) e “Back To Black” (2006), respectivamente – este não é de jeito algum o sucessor do maravilhoso álbum de 2006; uma compilação de gravações feitas antes do lançamento de seu debut, “Lioness” é uma genuína pérola pra quem sempre fora admirador da cantora Amy Winehouse.
Pela idade de suas faixas, o álbum não trás nenhuma inovação à sonoridade de Winehouse; sendo assim, é sempre possível pensar numa faixa equivalente: “Our Day Will Come” tem a pegada Ska de “Me And Mr. Jones” e “Just Friends”; “Between The Cheats” possui aquela sonoridade 1950’s bem explorada em todo o “Back To Black”. O que faz do “Lioness” um álbum emocionalmente poderoso é a sensação que Winehouse está despida e exposta em cada faixa. Talvez seja porque elas remetem ao fato de que não a temos mais presente – e se for este o único motivo, perdoem o emotivo crítico/fã – mas, quando nos deparamos com a lentidão e melancolia das versões originais de “Tears Dry On Their Own” e “Wake Up Alone” é difícil não se emocionar por tudo aquilo que Winehouse fora (é, pode ser uma questão de nostalgia). Sua versão para a clássica de Carole King, “Will You Still Love Me Tomorrow”, com suas cordas intermitentes e metais cinematográficos, é a dose perfeita de melodrama que alguém pode desejar; o dueto com Tony Bennett é sóbrio, mas não deve em emoção ao resto do álbum e a última faixa, “A Song For You” é uma esmagadora canção de adeus.
Claro que há momentos leves e humorosos como sua versão da nossa “A Garota de Ipanema”, a já conhecida gravação “Valerie” e a ultra sarcástica “Best Friends, Right?”; contudo, os tesouros secretos de “Lioness: Hidden Treasures” evidenciam a grande incógnita que era a persona de Winehouse: um gênio atormentado por demônios que nunca foram, nem serão, revelados, mas que eram generosamente exorcizados para nós em suas maravilhosas composições; um produto da nossa errática geração, incapaz de compreender a própria humanidade e, portanto, adormecendo-se.
Isso aqui é mais que uma mera crítica ao álbum. É a honesta e emocionada carta de amor e despedida de um admirador que tentou, desde o princípio, compreender a mulher por detrás do gênio; mas que, no fim, aceita de peito aberto aquilo que sempre fora disposto a nos dar: o talento da Maravilhosa Amy Winehouse.
quase gozo! rs
ResponderExcluirmuito bom o texto...Realmente tentar compreender a Amy era e é inútil...apesar da conturbada vida q levava ela é um ser q vai além da nossa compreensão foi feita pra ser sentida e é assim que nós verdadeiros admiradores e fãs dessa incomparável Diva fazemos, a sentimos e agora como nunca...♥
ResponderExcluirMuito bom... Adorei... Tenho q ouvir esse trabalho postumo... Amy sempre maravilhosa...
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ResponderExcluirVocês estão cada vez melhores, melhor que ler essa matéria foi ler ouvindo a musica no repeat. Citando Mariana Dias, quase gozo, parabéns mesmo.
ResponderExcluirGosto do texto, mesmo não compartilhando com a vontade em tentar entender a Amy. Acho que assim como grandes gênios que não conseguiram se disfarçar completamente na pessoa pública (sendo por isso quase a totalidade deles engolidos pela crueldade do mundo que nós ordinários nunca sentiremos) a obra submerge e não só como primor, mas também como um abismo, ou melhor, um mistério. O mistério é cativante e basta por si.
ResponderExcluirE agora?
ResponderExcluirMesmo já admirando imensamente o jeito daquela menina muito louca, que me remetia sempre ao meu mais intenso gosto da fantástica musicalidade negra americana, depois de ler perplexo esse ESPETACULAR texto, só penso emocionalmente em querer conhecer esse trabalho póstumo.
E, assim, continuar crendo que há um tipo de gente que jamais morrerá, mesmo que desapareça assim tão prematuramente...