quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Você sabe quem é Wilson Simonal?

Por Marcelo Lopes


Foto: Google Imagens
Tenho uma mania que já me deu muitos prazeres na vida que é fuçar o passado. Sons, imagens, filmes, contos populares, costumes antigos, palavras, tudo me desperta a curiosidade. Não sei se pela influência da minha formação em História ou se foi mesmo esta mania que me levou a entrar para esta área, mas o fato é que muito recentemente redescobri algo que o Brasil fez questão de esquecer: Wilson Simonal.

Este personagem polêmico da história recente do país cruzou meu caminho inúmeras vezes nos últimos cinco anos, aparecendo em livros, documentários e, especialmente, na execução pontual de suas músicas. Simonal ainda hoje é um fenômeno peculiar no Brasil por dois motivos centrais. O primeiro, por um talento musical e cênico incrível, datado em seu tempo, mas popular ao extremo. Tinha uma capacidade de atrair o público de forma avassaladora, moldada a partir de uma jogada de mídia assertiva. Como um Luan Santana elevado à quinta potência, só que com talento. De outro lado, foi o bode-expiatório de um episódio que expôs toda virulência e preconceito de um Brasil cru, desnudado de suas maquiagens, de um país de “homens cordiais”, como bem dizia Sérgio Buarque de Holanda.

Wilson Simonal de Castro (pai dos músicos Max de Castro e Simoninha) foi um dos maiores showmens que o Brasil já teve, numa época em que isso ainda precisava ser inventado por aqui. Chamou muito minha atenção que alguém assim tenha passado em brancas nuvens à minha geração, que dele só chegamos a conhecer, quando muito,  a canção “País Tropical”, e mesmo assim, referendada por ser uma música de Jorge Ben Jor. Ícone do que ficou conhecido como “pilantragem”, o cantor encarnava a figura do malandro carioca. Não o malandro dos morros, mas o malandro da esperteza safa de quem transita por todo lado “tirando onda”, da ginga inconfundível que dialogou magistralmente com as duas frentes musicais mais importantes da sua época, embora totalmente antagônicas: a Bossa Nova e a Jovem Guarda.

Como bem descreveu o escritor Ricardo Alexandre, em sua biografia sobre o cantor, intitulada Nem Vem Que Não Tem: a vida e o veneno de Wilson Simonal: “produtores, fãs, familiares, amigos, detratores, gente de televisão, colegas músicos, técnicos de som, não há quem não ressalte, sempre com olhos arregalados (...) o suingue infernal, indescritível e fora de série de Simonal”. De fato, muitas décadas depois, eu mesmo vi isso acontecer.

Nos tempos de hoje, em que a música comercial nos empurra doses cavalares (e questionáveis) de sons pouco criativos e massificantes, elegendo quatro ou cinco gêneros como se mais nada houvesse no mundo, a capacidade de percepção apurada da população é recorrentemente subestimada. Recentemente, coordenei uma atividade em espaço público cujo evento tinha como fundo musical algumas músicas selecionadas. Muitas pessoas da comunidade local me perguntaram quem cantava, porque achavam o som muito bom, “estiloso” e “moderno”. Queriam saber sobre as versões de músicas conhecidíssimas como “Madalena”, Ivan Lins, e "Na Baixa do Sapateiro", de Ary Barroso, executadas de forma tão diferente e rítmica. Era Simonal.
O artista multifacetado descobriu seu potencial quando serviu ao exército e daí em diante não parou mais. Era capaz de movimentar plateias imensas e dominá-las com um carisma brilhante num tempo em que isso não era nada comum; cantar inglês perfeitamente, aprendido somente de ouvir (vide show com a diva Sarah Vaughan); ter um talento respeitado tanto por bossanovistas e jovem-guardistas, e ser, à sua época, um fenômeno à altura de Roberto Carlos no auge do iê-iê-iê. Estas eram apenas algumas de suas características, e, ironicamente, num país como o nosso, com uma ressalva importante: era negro, filho de empregada doméstica e viveu boa parte da vida pobre-pobre de marré-de-si.

Com o sucesso crescente, o patrimônio se avolumando e dono do maior contrato de publicidade até então assinado no país (com a empresa Shell), Simonal se envolveria num “embrulho” maior que ele mesmo, capaz de colocá-lo na pior situação que alguém poderia se encontrar no meio artístico em plena Ditadura Militar.

Em 1971, o cantor, desconfiado de seu contador, acusou-o de desfalque, demitindo-o. O suposto culpado moveu uma ação trabalhista contra Simonal e este fez a pior coisa que poderia ter feito: pediu a dois amigos militares para conseguir uma confissão do contador. Os soldados o levaram para as dependências do famigerado DOPS e o torturaram. 

Simonal acabou sendo acusado de sequestrador e entrou para a história como dedo-duro, um estigma que colou-se a sua imagem até o fim da vida. Nenhum artista queria mais tê-lo por perto, cantar, tocar, falar, ser visto perto do homem que até pouco antes era o maior espetáculo do Brasil. Perdeu o respeito, patrocinadores, shows agendados e o nome. Foi relegado violentamente ao ostracismo, sem direito a voz ou vez. Ser considerado delator em plena Ditadura Militar era pior que qualquer outra coisa. Simonal foi julgado culpado (formal e informalmente) pelo sequestro. Nos autos, era referido como colaborador das Forças Armadas e informante do DOPS.

Wilson Simonal, como um fenômeno brasileiro só pode ser compreendido no seu contexto. Em primeiro plano, foi a expressão de um talento individual e popular, um homem negro orgulhoso de ter vencido num país que o via com espetacular respeito. Um país cujo discurso da miscigenação e da tolerância racial não correspondia à realidade, muito menos que hoje. Seu status de artista era conveniente às exceções e Simonal transitava soberano, sob o manto do “todo onipotente da pilantragem”, termo que encarnava materialmente o “jeitinho brasileiro”. Num segundo momento, passou a ser a concretização dos medos, das neuroses e de tudo aquilo que o país “politizado-contra-a-repressão” não tolerava: um delator (na verdade, sem direito real de resposta sob sua própria situação), um amigo da ditadura (por ter sua história ligada aos tempos de exército) e principalmente, um homem sem caráter, capaz de atrocidades, de sequestro, como, aliás, dizia-se à boca pequena, era passível de acontecer, sendo ele um homem vindo da favela, de um ambiente pernicioso. Não que isso aconteça com todos da favela, Deus-me-livre, mas ficou claro que foi o caso dele. Entre todo o revanchismo sobre Simonal era isso que pensava o Brasil. Lógico, nada disso dito tão abertamente assim, mas tudo estava ali, visível acima das entrelinhas.

Somente há muito pouco tempo, Simonal deixou de ser um tabu. Começou-se mesmo a questionar se o caso do sequestro não foi apenas um “vacilo”, um ato impensado que se saiu do controle. Se houve mesmo a necessidade de descer sobre ele o manto do esquecimento e de tamanha repulsa. Principalmente, se a voz que o calou não foi de fato a do medo e do preconceito.

Simonal morreu em 25 de julho de 2000. Magro, alcoólatra, amargo e esquecido. Lutando ainda, com documentos à mão, para provar o que ninguém mais lembrava ou queria saber. Seu talento, no entanto, ainda marca indelevelmente a nossa história musical, embora sob uma sombra espessa que ainda hoje paira e o esconde. 

Para quem reconhece um talento, vale a pena conhecer. 

Fica a dica.



Confiram o trailler do documentário:

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