sábado, 10 de março de 2012

“É no pé do lajedo onde a onça mora”


Com a licença poética, Mariana Kaoos e Maria Eduarda Carvalho

Foto: Lucas Dantas
O causo que eu vou contar não é daqui, dali e nem de qualquer lugar. É de uma noite no Centro de Cultura, que, em meio à barulheira, espera e gritaria, aconteceu uma mágica que ninguém previa. A mágica veio através do chapéu de boiadeiro, da viola nos braços e das meias coloridas - que por pouco não passaram despercebidas. Com 640 pessoas, o teatro ficou pequeno, mas também, Eugênio Avelino, derramando aquele seu talento não tinha como não ficar. Todo mundo se sentou, esperando o show começar. As luzes se ascenderam, e às oito horas e trinta minutos, na boca da noite, como dizem os sábios matutos, Xangai entrou, cantando “lá na casa dos carneiros”, tornando todo mundo do público um cancioneiro, alegrando a multidão. Entre palmas e sorrisos, era dado o inicio da grande apresentação.


A vinda do Mestre da viola para fechar o verão conquistense se deu através da FMB Produções, que há seis anos vem trabalhando com uma proposta diferente, procurando trazer espetáculos e shows de qualidade para um publico consumidor de cultura. A produtora Ana Claudite contou que “Xangai veio no ano passado para a abertura do Festival de Música, mas a proposta desse show é totalmente diferente. Trazendo um convidado, Jessier Quirino, a estrutura do show acaba se dando de uma forma mais intimista, com um público que reconhece e consagra o trabalho dele. Nesses últimos tempos buscamos trazer artistas que não estão tão influentes na grande mídia, mas que propõem uma música diferenciada, de forte apelo cultural. Ainda são poucas pessoas que valorizam isso aqui em Vitória da Conquista. O foco da FMB é essa formação de plateia que consome produtos culturais distintos”.

Foto: Lucas Dantas
Xangai subiu ao palco comandando o início do espetáculo. Mais que a vontade em sua terra natal, o músico tem, com sua plateia, uma relação muito íntima, fazendo da mesma um coral que acompanhava emocionado. Algumas músicas, envolvendo boleros e grandes clássicos da cultura popular, depois, Xangai enfim convidou o escritor paraibano Jessier Quirino para se juntar a ele. A partir daí foram só risos, a sagacidade de Jessier prendeu a atenção dos presentes que o observavam atentamente enquanto ele contava e até mesmo ensaiva uma encenação dos seus causos. O paraibano explicou: “Essa cultura de contar histórias me remete muito ao rádio, que na minha opinião, é o meio de comunicação mais democrático que existe. Em qualquer cidade do interior, seja ela qual for, e tendo uma população com um grau de educação elevado ou não, o rádio chega, falando do dia a dia do povo, contando detalhes, histórias da vida de cada um. É uma coisa transmitida de forma oral, que passa de geração para geração. Então de forma alguma essa cultura pode ser esquecida, pois ela transmite os ensinamentos dos nossos antepassados”.

Dentre as várias abordagens feitas durante a noite, foi possível observar a inserção de uma cultura mais erudita dentro da popular. Xangai, dedilhando o Bolero de Ravel, improvisou com o público que correspondeu abertamente ao que estava sendo pedido. Talvez, o ponto alto do show, foi a homenagem prestada a Waldick Soriano, com a música Tortura de Amor. Após o show ele explicou que “se faz necessário que os jovens escutem todo e qualquer tipo de musica sem rótulos. Bolero de Ravel é um clássico, mas Waldick também tem composições lindas, que falam de vida, de amor e que tocam a alma de qualquer um. É preciso parar de querer classificar as coisas dentro de um só estilo porque o que existe é o bom e o ruim, e Waldick Soriano certamente é um dos melhores”.
Foto: Lucas Dantas

O espetáculo seguiu entre músicas e histórias, Xangai não só afirmou como comprovou, “a língua é sempre a mesma, o que muda é o sotaque”. A noite foi memorável, o cantador e sua moda de viola a colocar o público para se emocionar com conhecidas e memoráveis toadas como “O ABC do Preguiçoso”. Inebriada com a cantoria, a moça bonita que sentava logo ao lado - talvez a cabocla das músicas e poesias que os poetas tanto citavam - deixou-se confessar que achou que fosse morrer sem ouvir essa musica, “mas ainda bem que ele cantou, Xangai é coisa rara e ele consegue trazer esse gosto, fazer esse resgate do fim de tarde na roça, da vida simples, da cultura popular como ninguém”.

O conglomerado de pessoas que, ao fim do espetáculo, foram ao camarim agradecer as estrelas da noite pela apresentação, lotou a sala, fazendo com que o calor humano unisse todos com intuito de celebrar. Lá, esperando para falar com Xangai, estava o cantor Eduardo Ribeiro, que emocionado, deixou-se confessar: “Vir ao show de Xangai e Jessier é fundamental para me alimentar dessa cultura popular que ele mesmo ressalta com paixão. Hoje, com a geração coca-cola, com a fugacidade que os produtos culturais se inserem na grande mídia e na vida das pessoas, há uma desvalorização muito grande para trabalhos como esse, o que é uma pena, porque é de altíssima qualidade. Aqui na cidade precisa haver uma reeducação, o jovem principalmente precisa criar um hábito de cultuar não só o sertanejo, o axé, o rock ‘n roll, mas também o que nós produzimos. Reconhecer o que temos, para poder levar isso a outros lugares do país e quem sabe do mundo”.

Foto: Lucas Dantas
A noite foi maravilhosa e o público com certeza voltou pra casa mais leve, mais feliz. Há quem tenha se encontrado, ou revisitado suas infâncias nos causos e nos termos característicos do sertanejo, mas há também quem tenha saído de lá com algo novo na bagagem, conhecido ou se aproximado de um universo distante da realidade urbanóide tecnológica atual. Momentos como esse deveriam se repetir em looping, porque não são menos que inebriantes e incansáveis.

No Rebucetê tem cantador? Agora tem, sim senhor.

São em noites como essa que os jovens deveriam se engajar. Cultura popular, cachaça e histórias para nunca mais se acabar.

3 comentários:

  1. Como sempre O Rebucete com excelentes matérias... Tenho orgulho de ver que essa produção é do meu curso.

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  2. Muito boa matéria. Lamento estar tão longe e ter perdido o show de Xangai.

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